Opinião – Mais uma lambança do legislador: a velha celeuma dos juros legais

Sérgio Niemeyer

Recentemente, foi promulgada a Lei 14.905/2024 que altera dispositivos do Código Civil. Algumas das alterações entraram em vigor na data da publicação da lei, outras entrarão em vigor a partir de 1º de setembro (60 dias após a publicação).

No meu sentir, as alterações feitas pela Lei 14.905/2024 mais atrapalham do que ajudam.

Primeiro, o IPCA só é divulgado pelo IBGE com uma defasagem de um mês. Na página do instituto na internet encontra-se a publicação do número-índice do índice de preço a cada mês. A variação entre cada dois números-índices seguido fornece a inflação media pelo IPCA.

Assim, o número índice de junho/2024 foi 6.941,510. Já o número-índice de julho/2024, divulgado recentemente, em agosto/2024, foi 6.967,890. A variação entre esses dois números-índices é de 0,38%, expressão percentual também divulgada pelo IBGE para o IPCA de julho.

Isso significa que a cesta de preços que compõe o IPCA passou a custar 0,38% a mais em julho do que em junho. Então, conclui-se que o IPCA de julho/2024 mostra a inflação (variação de preços) de junho para julho.

Mas estamos em agosto. Como é que se vai atualizar uma dívida/crédito que vence em 15/08/2024, por exemplo, se o IPCA que mostra a variação de julho para agosto só será conhecido no primeiro decêndio de setembro?

Essa é a primeira lambança do legislador.

Mas tem mais

Ao dizer que será zero a taxa de juro sempre que a taxa referencial Selic menos o IPCA produzir um resultado negativo, o legislador instituiu a mora zero. Mora zero é o mesmo que inexistência de mora. Inexistência de mora é o mesmo que ausência da penalidade que a mora caracteriza e onera o devedor faltoso.

Com efeito, os juros de mora possuem um duplo efeito jurídico. Por um lado, representam a penalidade imposta ao devedor remisso, e nesse caso integra a cláusula penal. Por outro, em razão do parágrafo único do artigo 404 do Código Civil, em conjunto com a pena convencional, recobrem-se de natureza indenizatória pelo que o credor razoavelmente deixou de lucrar desde o vencimento da obrigação de pagar determinada importância em dinheiro (v.g., mútuo feneratício, atraso de aluguel, atraso no pagamento de qualquer prestação pecuniária, etc.).

Enquanto penalidade, não faz nenhum sentido que os juros de mora possam ser zero, porque juros zero é sinônimo de ausência de penalidade. Já como indenização, os juros zero representam um ganho para o credor, porquanto seu custo de oportunidade, ou, para usar as mesmas palavras da lei, o que razoavelmente deixou de lucrar não só não existe, como qualquer aplicação a juros negativo resulta redução do capital empregado.

Eis aí outra lambança do legislador

Mas há uma terceira lambança legislativa. O que exatamente o legislador quis dizer com “taxa referencial Selic”. Selic não é taxa de juros. Selic é o acrônimo de Sistema Especial de Liquidação e Custódia. A taxa que o Banco Central divulga de tempos em tempos é denominada pelo próprio Bacen como taxa-meta para as operações interbancárias registradas no Selic.

Tanto isso é assim que o Banco Central chama de “taxa Selic” não a taxa-meta fixada pelo Copom, mas a média das taxas diárias praticadas nas operações interbancárias diárias compromissadas com lastro em títulos públicos federais. Eis como o BC explica a “taxa Selic”.

“A taxa Selic é a taxa básica de juros da economia, que influencia outras taxas de juros do país, como taxas de empréstimos, financiamentos e aplicações financeiras. A definição da taxa Selic é o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação.

A Selic é a taxa de juros média praticada nas operações compromissadas com títulos públicos federais com prazo de um dia útil. O BC realiza operações no mercado de títulos públicos para que a taxa Selic efetiva esteja em linha com a meta da taxa Selic, que é definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC.”

Se por taxa referencial o legislador pretendeu referir-se à taxa-meta, então, só se poderá calcular os juros com um atraso de um mês, porque só no mês seguinte será conhecido o número-índice do IPCA. Desse modo, um débito que vence no dia “D” do mês “X” de um determinado ano qualquer só poderá ser conhecido no mês “X+1” quando sair o IPCA do mês X.

E mais, se por “taxa referencial Selic”, o legislador se referiu à própria “taxa Selic” segundo a definição dada pelo Bacen, aí ter-se-á que esperar também a divulgação pelo BC da média diária das taxas praticadas nas operações compromissadas com títulos públicos. É evidente que isso conspira contra a dinâmica do comércio jurídico e da concretização da lei.

Demais disso, ao modificar a redação do artigo 591, a Lei 14.905/2024, o legislador acabou com a limitação dos juros que ali havia. Então, uma vez que o artigo 591, com a redação dada pela Lei 14.905/2024, estabelece que a taxa legal é a “taxa referencial Selic” — o que quer que isso signifique —, deduzida do IPCA, os juros não poderão ser superiores ao dobro dessa taxa legal, por aplicação direta o artigo 1º do Decreto 22.626/1933.

Além do mais, continua vedado o regime de juros compostos (capitalização de juros) em períodos inferiores ao anual. Isto porque tanto o artigo 591, com a redação original antes da alteração empreendida pela Lei 14.905/2024, quanto o art. 4º do Decreto 22.626/1933 vedavam a capitalização anual.

O artigo 591, em sua redação originária, expressamente permitia a capitalização anual. Então, por aplicação da regra de hermenêutica jurídica (“inclusio unius, alterius est exclusio”), proibida estava a capitalização em períodos inferiores ao anual.

Já o artigo 4º do Decreto proíbe contar juros sobre juros — veda, portanto, a capitalização (regime de juros compostos) —, mas admite a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano, e isso não é exatamente um regime de capitalização composta dos juros.

Como não havia antinomia entre o disposto no artigo 591 do CC/2002 com o artigo 4º do Decreto 22.626/1933, ambos coexistiram válidos porque produziam o mesmo efeito jurídico. A alteração da redação do artig 591 do CC, portanto, não altera o panorama a respeito da capitalização dos juros (regime de juros compostos), a qual continua vedada para períodos inferiores ao anual.

Melhor teria sido o legislador acabar com essa celeuma e estabelecido que a taxa de juros é de J% ao ano, o I% ao mês, os quais acrescerão o principal corrigido monetariamente de acordo com o índice eleito pelas partes, ou, na falta deste, pelo IPCA ou INPC, enfim, qualquer outro escolhido pelo legislador. Com essa providência, ficaria evidenciado que os juros assim definidos na lei são considerados como juros reais de modo que todos terão prévia ciência dessa circunstância. A segurança jurídica teria agradecido bastante!

Além da lambança feita pela Lei 14.905/2024, acede o que está para ser julgado no REsp 1.795.982/SP, em que já foi definido que os juros de mora devem ser a taxa Selic, a qual incorpora expectativa de correção monetária.

O equívoco dessa situação é que expectativa de correção monetária não é correção monetária. A famigerada “taxa Selic”, seja segundo a definição, seja a taxa-meta divulgada pelo BC é uma taxa prefixada e isso contraria o quanto previsto em lei, porque a Lei 6.899/1981, artigo 1º, estabelece o direito de correção monetária, a qual só se concretiza efetivamente “ex post”.

Ou seja, a correção monetária deve ser sempre pós-fixada e não como sucede quando decorre de uma taxa prefixada na qual está embutida uma mera expectativa de correção monetária. Além disso, não ficou definido no julgamento, se se trata da taxa-meta Selic, aquela divulgada pelo Copom, ou a “taxa Selic” tal como definida pelo Bacen.

Também não se tem notícia se a decisão será modulada ou não. Se não for modulada para vigorar apenas para as execuções iniciadas após o trânsito em julgado do REsp 1.795.982/SP, ou, para não atingir as execuções, provisórias ou definitivas iniciadas antes do julgamento do recurso especial, haverá uma enxurrada de ações rescisórias, pois os juros serão reduzidos em quase 50% de seu valor, e como o próprio STJ já decidiu que os juros constituem matéria de ordem pública, de modo que podem ser revistos a  qualquer tempo, a confusão será geral.

E assim caminhamos firmes e fortes, aos trancos e barrancos, aguentando todo solavanco, na trilha da mais completa insegurança jurídica que sói assolar este Brasil de meu Deus!

Fonte: Consultor Jurídico

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