OPINIÃO – Impactos da nova lei de preços de transferência nas práticas de thin capitalization

Mateus Moura

A nova lei de preços de transferência — Lei nº 14.596 de 14 de junho de 2023 — ampliou o rol de pessoas físicas e jurídicas submetidas ao controle de operações artificiais para fins tributários. O antigo conceito de “partes vinculadas” e seu rol taxativo previsto no artigo 23 da Lei nº 9.430/1996 deu espaço a uma definição principiológica de “partes relacionadas” e a uma lista exemplificativa.

Efeito disso é que novos sujeitos passaram a ser alcançados pelas disposições da Lei nº 12.249/2010, na parte em que regula as práticas de thin capitalization ou subcapitalização.

 Tais práticas ganham espaço quando uma entidade financia as suas atividades empresariais não com recursos próprios (capital social), mas sim mediante a captação de recursos de terceiros (dívidas). Esse financiamento por meio do capital de terceiros é remunerado por juros, os quais podem ser deduzidos na apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (artigo 17, §1º, do Decreto-lei nº 1.598/1977).

Trata-se de dedutibilidade lícita, porém, sua regulação passa a ser mais restrita quando as operações fogem das condições normais de mercado, abrindo margem para a subcapitalização.

 Isso ocorre quando os empréstimos têm como credores partes relacionadas (Lei nº 14.596/2023), as antigas partes vinculadas (Lei nº 12.249/2010), de modo que tais operações podem ser manipuladas artificialmente com o objetivo de criar um montante elevado de despesas financeiras para fins de dedução na apuração do lucro real.

 Tomemos como exemplo a seguinte situação delineada no Acórdão Carf nº 1201-003.320 [1] (de 12 de novembro de 2019): uma investidora estrangeira que constitui uma controlada no Brasil pode escolher ser remunerada de duas formas: dividendos, se integralizar capital, ou juros, se aportar os recursos na forma de empréstimo. Se integralizar capital, os dividendos serão recebidos após a tributação do IRPJ e da CSLL na controlada.

Mas, se aportar na forma de dívida, a remuneração, auferida na forma de juros, será deduzida antes como despesa financeira na controlada brasileira, reduzindo a carga tributária. Assim, as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL são reduzidas por despesas financeiras associadas a um volume excessivo (artificialmente) de dívidas contraídas com partes relacionadas, situação essa que não existiria em condições normais de mercado.

Para coibir essas práticas, foi editada a Medida Provisória nº 472/2009, posteriormente convertida na Lei nº 12.249/2010, a qual, em sua exposição de motivos [2], pretendia: “evitar a erosão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL mediante o endividamento abusivo realizado da seguinte forma: a pessoa jurídica domiciliada no exterior, ao constituir subsidiária no país, efetua uma capitalização de valor irrisório (subcapitalização), substituindo o capital social necessário à sua constituição e atuação por um empréstimo, que gera, artificialmente, juros que reduzem os resultados da subsidiária brasileira”.

 À época, o Executivo havia estimado que a dedução desses juros da base de cálculo do IRPJ (alíquota de 15% mais adicional de 10%) e da CSLL (alíquota de 9%) gera uma economia tributária de 34% do seu valor. E, mesmo considerando que as remessas para pagamento de juros são tributadas pelo Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF) à alíquota de 15%, ainda restaria uma economia tributária de 19%.

O objetivo da medida foi tornar os juros considerados excessivos indedutíveis, segundo critérios e parâmetros legais, a fim de controlar o endividamento abusivo junto a pessoa “vinculada” no exterior, da seguinte forma:

1. Os juros pagos ou creditados por fonte situada no Brasil à pessoa física ou jurídica vinculada, residente ou domiciliada no exterior, não constituída em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, somente serão dedutíveis, para fins de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, quando se verifique constituírem despesa necessária à atividade, conforme definido pelo art. 47 da Lei nº 4.506//1964, no período de apuração, atendendo aos seguintes requisitos:

(i) no caso de endividamento com pessoa jurídica vinculada no exterior que tenha participação societária na pessoa jurídica residente no Brasil, o valor do endividamento com a pessoa vinculada no exterior, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não seja superior a 2 (duas) vezes o valor da participação da vinculada no patrimônio líquido da pessoa jurídica residente no Brasil;

(ii) no caso de endividamento com pessoa jurídica vinculada no exterior que não tenha participação societária na pessoa jurídica residente no Brasil, o valor do endividamento com a pessoa vinculada no exterior, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não seja superior a 2 (duas) vezes o valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica residente no Brasil; e

(iii) em qualquer dos casos acima, o valor do somatório dos endividamentos com pessoas vinculadas no exterior, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não seja superior a 2 (duas) vezes o valor do somatório das participações de todas as vinculadas no patrimônio líquido da pessoa jurídica residente no Brasil.

Ampliar pessoas sujeita à regra de subcapitalização

A nova lei de preços de transferência, apesar de manter inalteradas as regras acima, instituiu o conceito de “partes relacionadas” em seu artigo 4º, revogando-se o conceito de “partes vinculadas” previsto no artigo 23 da Lei nº 9.430/1996, de maneira a ampliar o rol de pessoas jurídicas sujeitas às regras de subcapitalização.

Nos termos da nova legislação, considera-se que as partes são relacionadas quando “no mínimo” uma delas estiver sujeita à “influência, exercida direta ou indiretamente” por outra parte, que possa levar ao estabelecimento de termos e de condições em suas transações que divirjam daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.

Fica caracterizada a relação de controle quando uma entidade:

(i) detiver, de forma direta ou indireta, isoladamente ou em conjunto com outras entidades, inclusive em função da existência de acordos de votos, direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais ou o poder de eleger ou destituir a maioria dos administradores de outra entidade;

(ii) participar, direta ou indiretamente, de mais de 50% (cinquenta por cento) do capital social de outra entidade; ou

(iii) detiver ou exercer o poder de administrar ou gerenciar, de forma direta ou indireta, as atividades de outra entidade.

Ainda, o texto trouxe um novo rol, em substituição ao das partes vinculadas constante no artigo 23 da Lei nº 9.430/1996, das partes consideradas como relacionadas. Apesar de não ter inovado na classificação das matrizes, filiais, sucursais, controladoras/controladas e coligadas, as quais já eram consideradas vinculadas, a nova lei abrangeu as seguintes situações específicas:

(i) as entidades incluídas nas demonstrações financeiras consolidadas ou que seriam incluídas caso o controlador final do grupo multinacional de que façam parte preparasse tais demonstrações se o seu capital fosse negociado nos mercados de valores mobiliários de sua jurisdição de residência;

(ii) as entidades, quando uma delas possuir o direito de receber, direta ou indiretamente, no mínimo 25% (vinte e cinco por cento) dos lucros da outra ou de seus ativos em caso de liquidação;

(iii) as entidades que estiverem, direta ou indiretamente, sob controle comum ou em que o mesmo sócio, acionista ou titular detiver 20% (vinte por cento) ou mais do capital social de cada uma; e

(iv) as entidades em que os mesmos sócios ou acionistas, ou os seus cônjuges, companheiros, parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, detiverem no mínimo 20% (vinte por cento) do capital social de cada uma;

Assim, a nova lei de preços de transferência afeta principalmente aquelas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizam transações controladas com partes relacionadas no exterior, tais quais acionistas, administradores, clientes, bancos, investidores, entre outros.

Verifica-se que a legislação ampliou o rol de pessoas físicas e jurídicas que podem ser enquadradas em operações de subcapitalização. Isso se deu com a utilização de expressões tais quais “no mínimo” e “influência exercida direta ou indiretamente”. Além disso, como dispõe a nova lei, esse rol é exemplificativo ao delimitar que a listagem daquelas pessoas consideradas como partes relacionadas é “sem prejuízo de outras hipóteses” que se enquadrem nos termos lá delineados.

 Esta abrangência é confirmada pela exposição de motivos [3] da Medida Provisória n° 1152/2022, que originou a nova legislação, ao dispor que “o regime brasileiro diferenciou-se da prática internacional (…) estabeleceu o conceito de ‘pessoa vinculada’, o qual diverge bastante das noções empregadas no âmbito internacional. (…) A nova legislação adota abordagem diferenciada. O artigo 4º apresenta uma definição principiológica, fundamentada no próprio conteúdo do princípio arm’s length, para que se determine se duas ou mais partes são relacionadas”.

Tal alteração surtirá efeitos reflexos nos planejamentos tributários empresariais que visam a dedutibilidade dos juros pagos ou creditados entre partes relacionadas das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, que deverão observar todo o regramento acima analisado.

[1] Acórdão nº 1201-003.320 – 1ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária.

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2007-2010/2009/Exm/EMI-00180-MF-MDIC-09-Mpv-472.htm. Acesso em: 27/07/2024.

[3] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9235627&ts=1718735592604&disposition=inline. Acesso em: 27/06/2024.

Fonte: Consultor Jurídico

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