DEFESA DA CONCORRÊNCIA – O futuro das análises de integrações verticais no setor de saúde suplementar

Por Polyanna Vilanova e Isabel Jardim

Na última sessão de julgamento do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em 2022, que ocorreu em 14 de dezembro, o Plenário da autarquia aprovou, por maioria, o ato de concentração entre o grupo hospitalar Rede D’Or São Luiz S.A. (Rede D’Or) e a seguradora de saúde Sul América S.A. (SulAmérica).

O referido ato de concentração tratou da proposta de combinação das atividades da SulAmérica e da Rede D’Or, com a unificação de suas bases acionárias, por meio da incorporação da SulAmérica.

A operação foi notificada ao Cade em 13 de junho deste ano e contou com a intervenção de nove terceiros interessados habilitados nos autos, os quais, desde o início da instrução pela Superintendência-Geral do Cade (SG/Cade), não pouparam esforços para intervir no processo por meio da apresentação de manifestações, pareceres econômicos e da realização de reuniões com autoridades da autarquia.

Segundo os terceiros interessados, a aprovação irrestrita da operação geraria diversos danos aos segmentos de operação de planos de saúde e de prestação de serviços à saúde, em especial riscos relacionados a fechamento de mercado e a uma alegada vantagem competitiva em decorrência do acesso de informações de concorrentes por meio da estrutura verticalizada da empresa combinada.

Apesar da apresentação de diversos argumentos dessa natureza, após extenso teste de mercado, que envolveu a expedição de 143 (cento e quarenta e três) ofícios aos principais players do segmento de saúde, entre operadoras de planos, administradoras de benefícios e prestadores de cuidados à saúde, além da solicitação de realização de estudo econômico por parte do Departamento de Estudos Econômicos do Cade, em 7 de novembro de 2022, a Superintendência-Geral do Cade emitiu parecer técnico pela aprovação sem restrições da operação.

Segundo o Parecer da Superintendência-Geral do Cade, como consequência da definição dos mercados relevantes sob as óticas produto e geográfica, a operação geraria sobreposição horizontal no mercado de planos de saúde médico-hospitalares e integração vertical entre os diversos serviços de cuidado à saúde da Rede D’Or e os planos de saúde médico-hospitalares ofertados pela SulAmérica, bem como entre a atividade de administração de benefícios e terceirização da administração de planos de saúde (TPA) ofertadas pelo Grupo Rede D’Or, por intermédio da Qualicorp, e os planos de saúde médico-hospitalares ofertados pela SulAmérica. Essas sobreposições e integrações, contudo, não foram capazes de levantar riscos concorrenciais relevantes, tampouco capazes de superar as eficiências ocasionadas pela verticalização das companhias.

Ocorre que apesar da acertada decisão da SG/Cade, todos os terceiros interessados apresentaram recursos ao tribunal, tornando tal decisão uma das mais contestadas da história da autarquia.

No entanto, conforme mencionado anteriormente, o Plenário manteve o entendimento da SG/Cade e concluiu que a operação não gera preocupações concorrenciais do ponto de vista de concentração horizontal, tampouco acarreta, em relação às integrações verticais, riscos concorrenciais em termos de fechamento de mercado, tanto a jusante como a montante. Os alegados riscos relativos ao acesso informacional resultante da verticalização também foram examinados à exaustão tanto pela SG/Cade, quanto pelo tribunal, que concluíram pela sua inexistência.

O fato de o Tribunal ter mantido o entendimento da SG/Cade não impediu a ocorrência de complexas discussões acerca da análise de operações que envolvem a verticalização de empresas, as quais, na visão das autoras, demonstram o contínuo esforço da autoridade antitruste nacional em refinar ainda mais a análise desse tipo de negócio, cada vez mais corriqueiro nas últimas décadas e que se revela como uma tendência cada vez mais forte nos segmentos de saúde.

À vista disso, a jurisprudência do Cade tem se debruçado nos últimos anos sobre verticalizações no setor e tem considerado que a verticalização entre planos de assistência à saúde e hospitais gera eficiências concorrenciais, de modo a propiciar maior controle de custos pelas operadoras, melhor conhecimento do histórico de saúde do beneficiário do plano, entre outras vantagens, como a redução da assimetria de informações e do problema da dupla margem.

É evidente, por óbvio, que a existência de eficiências em decorrência desse modelo de negócios não exime a autoridade antitruste de analisar e sopesar possíveis efeitos concorrenciais negativos nos mercados implicados, como a existência de capacidade e incentivos para fechamento dos mercados a jusante e a montante, além dos já mencionados riscos relativos ao acesso a informações de concorrentes.

Diante desse contexto, e somado à inexistência, por ora, de um guideline nacional sobre a análise de operações verticais, o estudo das decisões e discussões do conselho sobre o tema se revela como fonte essencial para a garantia de alguma previsibilidade aos agentes que pretendem emplacar negócios dessa natureza.

Da análise da decisão do tribunal no processo em comento, é possível concluir que o conselho ao mesmo tempo que pretende se manter alinhado com as melhores práticas internacionais sobre esse tipo de análise — como tem feito, registra-se, ao longo das suas décadas de atuação tanto no controle de estruturas, quanto de condutas —, também demonstra seu compromisso com a jurisprudência já firmada pela autarquia.

Assim como foram mantidas as definições de mercado relevante utilizadas em casos anteriores de integração entre planos de saúde e prestadores de serviços à saúde, também foram mantidas as etapas tradicionais de avaliação de capacidade e de incentivos para fechamento de mercado, além, é claro, da avaliação inicial da existência de poder de mercado.

O ponto relativo ao poder de mercado, inclusive, foi determinante para a aprovação do ato de concentração entre Rede D’Or e SulAmérica, uma vez que esta última não possui market share acime de 30% em nenhum mercado de atuação da Rede D’Or.

Ainda sobre o tema, vale registrar que foram feitas, ao longo do julgamento, reflexões sobre o safe harbor citado acima, o qual, segundo o conselheiro Victor Fernandes, não necessariamente precisaria ser atingido para que sejam identificados riscos à concorrência em operações de natureza vertical. Contudo, como dito, tal fator foi relevante na análise desse caso.

Além desse ponto, foram abordadas com minúcia três principais teorias do dano:  i) a teoria de fechamento do mercado a montante, isto é, de planos de saúde para prestadores de serviços à saúde concorrentes da Rede D’Or; ii) a possibilidade de aumento de custos de rivais; e iii) o risco de acesso a informações concorrencialmente sensíveis de concorrentes.

De forma acertada, o conselho entendeu que, do ponto de vista do risco de fechamento de mercado a montante, para que tal hipótese fosse factível, seria necessário a inexistência de ativos substituíveis e duplicáveis para o mercado a jusante, o que não se verificou após a análise de participação de mercado da SulAmérica, bem como da representatividade do faturamento de hospitais com a operadora. Além da ausência de capacidade, também se verificou a ausência de incentivos para a conduta de fechamento, tendo em vista as características dos segmentos envolvidos, notadamente a necessidade de ampla rede credenciada para a viabilidade comercial de uma operadora de planos de saúde que não atue de forma 100% verticalizada.

Essas características, em especial o fato de a demanda por planos de saúde e serviços à saúde ser interdependente, também foi determinante para a análise desta e das demais teorias do dano concorrencial citadas acima, uma vez que restou demonstrado que condutas discriminatórias em relação aos concorrentes de ambas as companhias prejudicariam sobremaneira suas operações.

Por fim, com relação à teoria relacionada ao acesso informacional, foram consideradas também os aspectos reais dos mercados implicados na análise em comento. Inicialmente, foi reconhecido que os mercados de saúde, diferentemente de outros setores, em que há relevantes segredos comerciais e amplo sigilo sobre fatores como identidade de clientes, no setor de saúde as supostas vantagens competitivas que poderiam ser obtidas por meio de um alegado acesso a informações por meio da atuação verticalizada são limitadas, e, na realidade, o acesso a tais informações pode produzir eficiências significativas para o beneficiário final, sem que sejam gerados quaisquer prejuízos ao ambiente concorrencial. Isso, porque o setor de saúde já possui, por determinação regulatória, obrigações de transparência perante o consumidor final, bem como amplo volume de informações publicamente disponíveis sobre as atividades das OPS e estabelecimentos de cuidados à saúde disponíveis a nível individualizado em sistemas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Além disso, também foi reconhecido que as negociações entre operadoras de planos de saúde e estabelecimentos de cuidados à saúde são extremamente individualizadas, de modo que qualquer informação sobre determinada negociação não resulta, em nenhuma hipótese, na possibilidade de se replicar as mesmas variáveis em contratos distintos, o que se agrava ainda mais pelo fato de que tais contratos são negociados em momentos diversos e com base em fatores históricos específicos de cada relação contratual.

Outro ponto importante reconhecido pelo Cade diz respeito ao fato de que os dados que eventualmente poderiam vir a ser compartilhadas são cada vez menos desagregados em razão da tendência de migração para modelos de remuneração de bundled services e capitation, em detrimento do modelo de remuneração de fee for servisse, que exige um fluxo de informações de preço mais detalhado.

Fator ainda mais relevante foi o reconhecimento de que ainda que tais dados fossem compreendidos como concorrencialmente sensíveis, há outros fatores que permitem concluir que sua detenção pela empresa combinada não teria o condão de prejudicar a concorrência, uma vez que há no mercado de saúde suplementar diversos players que já atuam tanto de forma verticalizada, quanto através de rede credenciada, e que não há evidências que indiquem tais agentes mitigaram a capacidade de competir de grupos não verticalizados que não teriam acesso a esse tipo de informações.

Sobre este último ponto, rememora-se o entendimento de Mauricio Bandeira Maia em parecer jurídico sobre a operação, em que destacou que “a imposição de remédio no sentido de impedir o esperado fluxo de informações entre as Requerentes, pois, além de eliminar eficiências naturais do modelo de negócios vertical, também resultaria na criação de restrição artificial à concorrência, uma vez que outras OPSs integradas, como Amil (UHG), Unimed e Hapvida-GNDI, teriam a possibilidade de fazer usos pró-competitivos dos dados obtidos por meio das correspondentes operações integradas, ao passo que a entidade resultante da presente operação estaria impedida de fazê-lo, desbalanceando-se, artificialmente, a arena competitiva entre esses agentes econômicos”.

Fica evidente, pela análise do caso em referência, que o Cade se mantém comprometido com a segurança jurídica, e que o faz por meio da observância de sua jurisprudência. Ao mesmo tempo, é notável a preocupação do conselho em desenvolver métodos de análise que, apesar de seguros e previsíveis, não sejam descolados da realidade, verificada no momento da análise, dos mercados envolvidos nas operações a ele submetidas. Essa postura do órgão é, sem dúvidas, indispensável para o desenvolvimento do ambiente de negócios no país e para oportunizar a inovação, tão cara, em especial, para os segmentos de saúde suplementar.

Fonte: Consultor Jurídico

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