DIREITO DE DEFESA – O dolo eventual e a lavagem de dinheiro

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Aquele que age sem conhecer as circunstâncias diante das quais atua está em erro de tipo. Nos termos do artigo 20 do Código Penal, o “erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”.

A problemática do erro nos crimes de lavagem de dinheiro é especialmente complexa diante da existência de um elemento normativo especial nos tipos penais da Lei 9.613/1998: as infrações penais antecedentes. Qual a consequência jurídica do erro ou desconhecimento da infração que originou os bens e produtos posteriormente ocultados ou dissimulados?

Pelas regras legais, se o agente desconhece a procedência infracional dos bens, não pode ter dolo de lavagem de dinheiro, e a conduta será atípica mesmo se o erro for evitável, pois não há previsão do crime na modalidade culposa.

Questão mais complexa é o grau de consciência exigido do agente sobre a procedência dos bens. É suficiente que ele desconfie da origem infracional (dolo eventual) ou é necessária a consciência plena de sua proveniência ilícita? Há quem sustente que apenas pratica lavagem de dinheiro aquele que tem plena ciência de que o produto tem origem delitiva (dolo direto).

Nessa linha, a Convenção de Viena (artigo 3, 1, b), de Palermo (artigo 6, 1, ii) indicam que apenas quem tem conhecimento da proveniência dos bens pratica lavagem de dinheiro. Por outro lado, há quem afirme que basta a mera suspeita da origem infracional (dolo eventual) para a existência do dolo e o afastamento do erro de tipo. Nesse sentido, a Convenção de Varsóvia (2005) indica que os Estados-Membros da Comunidade Europeia podem tomar medidas para entender como crime os casos de lavagem em que o agente suspeitava da origem ilícita dos bens ou deveria conhecer a origem ilícita dos bens, indicando a possibilidade da prática do crime a título de dolo eventual ou mesmo de imprudência (artigo 9, 3).

Entendemos que o agente deve ter completa consciência da origem ilícita dos bens para a tipicidade da lavagem de dinheiro na forma do caput do artigo 1.º. Ainda que Exposição de Motivos da Lei original admita expressamente o dolo eventual (EM, 692/MJ/1996), tal extensão não parece adequada. Embora seja um indicativo importante sobre a intenção do legislador, a Exposição de Motivos que acompanha a lei não tem caráter de interpretação autêntica ou vinculante, e pode ser suplantada por outras formas de apreensão do sentido da norma penal, como pela interpretação sistemática ou normativa.

O dolo eventual não parece compatível com o tipo penal em comento, sob o prisma de tais interpretações. De uma perspectiva sistemática, basta observar tipos penais semelhantes, para perceber que o dolo eventual, quando admitido pelo legislador, é sempre expressamente previsto no texto legal pela expressão “deve saber”.

Isso não se aplica a todos os tipos penais, mas àqueles que tratam do manuseio de produtos decorrentes de infrações prévias, como na receptação qualificada (art. 180, § 1.º, do CP), e na receptação de animal (CP, artigo 180-A). Em todos eles o tipo penal se refere a atos relacionados com produtos derivados de infrações penais, e a possibilidade do dolo eventual encontra-se expressamente prevista na forma do “deve saber”.

O tipo penal de lavagem de dinheiro previsto no caput do artigo 1º da Lei 9.613/98, assim como o de favorecimento real (CP, artigo 349), também mencionam proveitos de crime, mas não apresentam essa expressão “devendo saber”, como fazem os outros tipos apontados, a indicar a ausência da modalidade de dolo eventual nestes casos.

Do ponto de vista político criminal, a aceitação do dolo eventual impõe uma carga de insegurança às atividades econômicas e financeiras, pois sempre é possível duvidar da procedência de bens transacionados. Ainda que se afirme que o dolo eventual exige razoável suspeita da procedência ilícita dos recursos, a linha que demarca o início dessa dúvida fundada não é suficientemente clara para conferir segurança àqueles que operam recursos alheios, como bancos e similares. Por isso, a tipicidade subjetiva da lavagem de dinheiro na forma do caput do artigo 1.º, se limita ao dolo direto.

Entretanto, essa não é a posição majoritária na jurisprudência, que admite o dolo eventual na lavagem de dinheiro. Por isso, ainda que tal postura não nos  pareça a mais correta, passamos a tecer algumas ponderações sobre os cuidados necessários para o reconhecimento do dolo eventual na lavagem de dinheiro.

No dolo eventual, ainda que seja desnecessária uma vontade explícita de resultado e a ciência plena da origem ilícita do bem, exige-se uma consciência concreta do contexto no qual se atua. Como ensina Roxin, não basta uma consciência potencial, marginal, ou um sentimento. É preciso mais: uma percepção clara das circunstâncias, uma compreensão consciente dos elementos objetivos que apontem para uma provável ilicitude dos bens.

Ainda que seus contornos não sejam claros, deve o intérprete reconhecer um contexto de suspeita robusta, na qual o agente perceba o risco efetivo de que tais bens provenham de atos ilícitos, e assuma a possibilidade de contribuir para um ato de lavagem de dinheiro.

A mera imprudência ou desídia não é suficiente para o dolo eventual. Importante aqui distinguir o dolo eventual da culpa consciente. No primeiro, o agente suspeita da procedência ilegal dos recursos, e assume o risco de colaborar com sua ocultação. Na culpa consciente, o agente percebe algo estranho nos bens, identifica algo atípico em suas características, mas, apesar disso, tem certeza ou segurança de sua origem lícita, seja porque confia naquele que lhe entrega os valores, nos procedimentos por ele adotados para prevenir o manejo de recursos ilegais, seja por qualquer outro motivo similar.

Dessa forma, não basta a percepção de indícios objetivos de anormalidade sobre os bens para o dolo eventual. É necessário constatar que eles geram dúvida na mente do autor, que são suficientes para indicar uma possibilidade de origem indevida. Caso tais elementos sejam imprudentemente desconsiderados, diante de uma representação equivocada do contexto fático, haverá apenas culpa consciente.

Fonte: Consultor Jurídico

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