FINTECH & CRYPTO – CVM decide que tokens de “renda fixa” são valores mobiliários

Por Isac Costa

Teve início nesta terça-feira (4/4) um novo capítulo na regulação de ativos virtuais como investimentos no Brasil, por conta da edição do Ofício Circular CVM/SSE 04/23. Em síntese, a CVM (Comissão de Valores Imobiliários) informou ao mercado que tokens de recebíveis e tokens de renda fixa são provavelmente valores mobiliários.

Se determinado ativo for ofertado publicamente e gerar expectativa de benefício econômico a seus adquirentes, de modo que o resultado dependa do esforço de outros que não estes, estaremos diante de um valor mobiliário, nos termos do artigo 2º, IX da Lei 6.385/1976. Não importa se tratamos da venda de uma propriedade rural com a obrigação conjunta de cultivá-la e partilhar os resultados (caso do precedente norte-americano SEC vs. Howey & Co. que gerou o conhecido teste de Howey) ou de um token armazenado em uma blockchain.

Nessa hipótese, tanto o emissor como a oferta pública devem obter registro junto à CVM, além da obrigatoriedade de negociação em mercados organizados e observância das normas de infraestrutura de mercado (escrituração, custódia, depósito centralizado, registro, compensação e liquidação).

Tokenização

O mercado brasileiro é um dos mais inovadores do mundo em matéria de tokenização de ativos. As tecnologias de registro distribuído para emissão e negociação de tokens permitem a criação de um mercado para investimentos alternativos, com títulos padronizados, infraestrutura potencialmente menos custosa e facilidade na automação de fluxos de pagamento.

Nesse contexto, surgiram tokens de precatórios, cotas contempladas de consórcio, certos recebíveis e outros direitos, viabilizando a circulação de valor em segmentos pouco padronizados e com dificuldade de aproximação entre compradores e vendedores. Diversas empresas protagonizaram emissões desses tokens e algumas, como a MB e a Liqi, chegaram a anunciar o produto “tokens de renda fixa”.

No Parecer de Orientação CVM nº 40/2022, o regulador brasileiro já havia sinalizado que “criptoativos que estabeleçam o direito de seus titulares participarem nos resultados do empreendimento, inclusive por meio de participação ou resgate do capital, acordos de remuneração e recebimento de dividendos” seriam valores mobiliários, por gerarem expectativa de benefício econômico para seus compradores.

No que concerne aos tokens de renda fixa, a dúvida envolvia o esforço de terceiro para a geração do benefício econômico esperado pelo investidor.

Tokens de renda fixa

De acordo com o Ofício SEE/CVM 04/2023, os tokens de renda fixa têm as seguintes características usuais:

  • São ofertados publicamente por meio de “exchanges”, “tokenizadoras” ou outros meios;
  • Conferem remuneração fixa, variável ou mista ao investidor;
  • Podem ser representativos, vinculados ou lastreados em direitos creditórios ou títulos de dívida;
  • Os pagamentos de juros e amortização ao investidor decorrem do fluxo de caixa de um ou mais direitos creditórios ou títulos de dívida;
  • Os direitos creditórios ou títulos de dívida representados pelos tokens são cedidos ou emitidos em favor dos investidores finais ou de terceiros que fazem a “custódia” do lastro em nome dos investidores;
  • A remuneração é definida por terceiro que pode ser o emissor do token, o cedente, o estruturador ou qualquer agente envolvido na operação.

A CVM entendeu que há, em essência, uma operação de securitização e que os tokens são equiparáveis a certificados de recebíveis (artigos 18, parágrafo único, e 19 da Lei nº 14.430/2022). De certo modo, haveria a oferta de uma fração ideal de um direito creditório. Alternativamente, esses tokens também poderiam ser considerados como contratos de investimento coletivo, pois:

  • A oferta dos tokens gera “expectativa de benefício econômico por parte dos investidores, via remuneração ofertada”;
  • Caso as “atividades de seleção, análise de risco, precificação, aquisição, manutenção,custódia ou gestão, seja do(s) direito(s) creditório(s) ou de seu fluxo de caixa, inclusiveem atividades de cobrança, sejam desempenhadas, em conjunto ou isoladamente, porterceiros que não o próprio investidor”;
  • Quando há coobrigação do cedente ou de terceiros para o adimplemento dos tokens, pois “o esforço do cedente ou de terceiros para o sucesso do investimento é relevante para a expectativa de benefício econômico dos investidores”.

A CVM deixou clara sua preocupação em propiciar a maior transparência possível para os investidores acerca das características dos tokens ofertados e dos riscos associados a essas operações.

Um duro golpe no setor

Diante da predominância de exchanges estrangeiras que se valem de estratégias de arbitragem regulatória (e, com isso, dominam o mercado aqui e alhures), as empresas brasileiras da criptoeconomia vêm direcionando seus esforços para a criação de produtos que oferecem vantagens em relação às infraestruturas de mercado tradicionais e propiciam opções para a diversificação de carteiras dos investidores.

A imposição do regime tradicional de ofertas públicas e da obrigatoriedade de negociação e serviços de infraestrutura nos moldes da regulação vigente pode representar um obstáculo difícil de superar, não apenas pelos custos de observância, mas também pelas taxas praticadas pelos participantes regulados e pela própria natureza do armazenamento descentralizado de dados.

Para tentar remediar a situação, a CVM destacou a possibilidade de as ofertas públicas dos tokens de renda fixa serem realizadas por meio de plataformas de crowdfunding, reguladas pela Resolução CVM nº 88/2022, observadas, ainda, a necessidade de contratação de escriturador para o controle da titularidade dos tokens, pois “token não substitui o valor mobiliário em sua representação cartular ou escritural, tampouco atua como certificado do mesmo” ou, então, os casos em que a própria plataforma pode controlar a titularidade, quando o registro em uma rede descentralizada poderá ser utilizado, “desde que seja possível controlar e comprovar a titularidade e a existência de transações”.

Além da inconveniência dos limites das ofertas via crowdfunding (máximo por investidor, receita anual da emissora e restrições temporais), um inconveniente relevante desta alternativa é a restrição à negociação em mercado secundário que se assemelhe a uma bolsa. De acordo com o regime atual, a negociação subsequente dos títulos emitidos via crowdfunding deve seguir uma dinâmica semelhante à de um mural de “classificados”, uma solução anacrônica e incompatível com a dinâmica dos livros de ofertas das exchanges.

Ajustes na regulação vigente: vale a pena?

Por conta da atuação dos reguladores do mercado de capitais, muitos projetos de tokens foram desenhados para não oferecer nenhum benefício econômico direto a seus compradores, salvo com a sua negociação em exchanges. Isso fez com que esses ativos virtuais dificilmente materializassem uma relação de dívida (debt) ou de participação (equity), distanciando-os de títulos aptos a financiar a atividade econômica e aproximando-os de fichas de um novo tipo de cassino.

Nesse cenário, há quem defenda que a regulação de serviços de ativos virtuais deve ser a de plataformas de apostas e uma eventual recepção pelos reguladores financeiros emprestaria ao setor uma legitimidade que não lhe é devida — estaríamos diante de uma “criptomania” e não de uma criptoeconomia.

Por outro lado, tendo em vista que a maioria dos ativos negociados em mercado já é digital, todos os agentes de mercado e as autoridades precisam ter maior clareza sobre qual é exatamente a vantagem de permitir a emissão e negociação de tokens com infraestrutura descentralizada e qual é a ineficiência do mercado atual que está sendo enfrentada.

Infelizmente, a mídia em torno das empresas da criptoeconomia acaba por evidenciar muito mais seu caráter especulativo, supostamente revolucionário ou até mesmo anárquico. A situação se torna ainda mais difícil com as nuvens pesadas de alegações de operações suspeitas de sonegação fiscal, evasão de dívidas e lavagem de dinheiro, além da facilitação de transações com objetos ilícitos.

A CVM pode flexibilizar as regras de crowdfunding, de securitização ou até criar um regime híbrido para recepcionar os ativos virtuais que sejam valores mobiliários, independente da regulamentação da Lei nº 14.478/2022. Contudo, há uma pergunta que parece ainda não ter sido devidamente respondida: vale a pena criar uma regulação especial para esse mercado?

Fonte: Consultor Jurídico

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