JUSTIÇA TRIBUTÁRIA – Reforma tributária e oportunidades perdidas: o caso das Cides

Por Sergio André Rocha

Estamos há mais de quatro anos imersos nos debates sobre a última onda de reforma tributária. A esta altura, tudo indica que em breve o Senado votará e — provavelmente — aprovará a sua versão da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 (PEC 45). Projetando o momento pós-aprovação das mudanças propostas para a Constituição, provavelmente identificaremos avanços, retrocessos, novos problemas, soluções não antecipadas e oportunidades perdidas. O foco aqui será uma oportunidade perdida.

Um dos tributos mais disfuncionais previstos na Constituição é a chamada Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), estabelecidas em seu artigo 149. Dizemos que elas são disfuncionais porque, no cenário atual, as Cides podem ter basicamente qualquer fato gerador e buscar qualquer finalidade.

Ao analisarmos o texto do referido artigo 149, notaremos que ele nada diz sobre os fatos geradores possíveis das Cides. Da mesma forma, este dispositivo é absolutamente silente sobre quais finalidades legitimariam a instituição de tais contribuições.

Sabemos que o Código Tributário Nacional (CTN) foi elaborado tendo como premissa a suficiência do estudo do fato gerador para a definição da natureza do tributo. É o que se infere do artigo 4º do Código, segundo o qual “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação”.

O critério do fato gerador é completamente inadequado para a caracterização das Cides, já que essas contribuições podem eleger qualquer comportamento como aspecto material de suas hipóteses de incidência.

As Cides são um dos exemplos do que Marco Aurélio Greco chama de “regulação finalística”, como observa este autor, ao examinar as mudanças que colocaram em xeque uma visão causalista da incidência tributária:

“Outra mudança resulta no fato de que passou a ser dada relevância, não tanto à causa dos fenômenos mas, fundamentalmente, aos fins visados com a conduta exigida. Esta é uma característica que afeta diretamente a figura das contribuições.

Elas são exigências em que o fim assume relevância maior do que a causa (= fato gerador). Quando a Constituição atribui a competência à União para instituir contribuição de intervenção no domínio econômico, contribuições sociais ou no interesse de categorias profissionais, não está enumerando fatos geradores (materialidades de hipóteses de incidência), mas qualificando fins a serem buscados com a sus instituição.”

(GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo: Dialética, 2000. p. 37-38).

A legitimação finalística demanda dos órgãos de controle, notadamente do Poder Judiciário, critérios de análise de constitucionalidade e legitimidade que eles não estão acostumados a manejar. Afinal, não se trata de debater materialidades conceituais constitucionais, previstas em regras de competência, nem hipóteses de incidência descritas na lei. A análise da compatibilidade constitucional de contribuições interventivas, por exemplo, vai demandar um estudo de meios e fins, sem o qual muito pouco é possível se dizer sobre o tema.

Diante da flexibilidade constitucional das Cides, coube à doutrina elaborar balizas que pautassem a sua instituição. Marco Aurélio Greco, por exemplo, trouxe algumas, ao sustentar que:

  • a intervenção econômica da União deveria circunscrever-se a setores específicos, sendo que os sujeitos passivos da contribuição somente poderiam ser aqueles integrantes de tais setores;
  • os perfis da intervenção econômica devem ser inferidos da própria Constituição;
  • sendo tributos relacionados a um fim, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade deveriam sempre ser considerados;
  • consequentemente, deve haver um motivo para que haja a intervenção pública no domínio econômico;
  • não poderia haver a sobreposição de CIDEs com a mesma finalidade;
  • os valores arrecadados com a contribuição devem ser aplicados na finalidade que legitimou a sua instituição e devem ser proporcionais aos gastos públicos demandados pela mesma;
  • a aplicação de tais receitas deve favorecer o grupo de contribuintes, etc. (GRECO, Marco Aurélio. Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Parâmetros para sua Criação. In: GRECO, Marco Aurélio (Coord.). Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico e Figuras Afins. São Paulo: Dialética, 2001. p. 11-31.)

Essa construção doutrinária, que daria maior racionalidade às Cides, nem sempre é seguida pelo Poder Judiciário, identificando-se uma certa leniência com a instituição de contribuições interventivas com fins obscuros, ou descasados o fato gerador e grupo de contribuintes respectivo.

Falta às Cides, bem como a outras contribuições, um marco legal bem definido. Como à época em que o CTN foi editado as contribuições não tinham a mesma relevância que possuem hoje no Sistema Tributário Nacional, o código simplesmente não as disciplinou. Essa falta de normas gerais tem reflexos negativos não apenas sobre as contribuições de intervenção, mas em relação às contribuições em geral.

Por outro lado, a falta de um regime jurídico bem definido na Constituição ou no CTN para as contribuições, aliada ao planejamento financeiro da União para frustrar as regras de repartição de receitas tributárias, turbinado pela patologia que é a Desvinculação de Receitas da União (DRU) —artigo 76 do ADCT — levou à proliferação das contribuições em geral, inclusive das Cides.

No auge da pandemia, por exemplo, muitas das iniciativas voltadas ao incremento de receitas tributárias referiram-se à criação de novas contribuições de intervenção, a maioria voltada para o setor de tecnologia.

Atualmente, o Supremo Tribunal Federal tem uma grande chance de colocar alguma ordem nessa matéria, no julgamento do Tema 914 da Repercussão Geral, que trata da “constitucionalidade da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico — Cide sobre remessas ao exterior, instituída pela Lei 10.168/2000, posteriormente alterada pela Lei 10.332/2001”. Esta contribuição, se em sua formatação original poderia até ser constitucional, certamente se tornou inconstitucional com as alterações promovidas pela Lei nº 10.332/2001. (Ver: GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André et. al. Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012. p. 421-422).

É assustador que, em 2023, estejamos debatendo sobre a (in)constitucionalidade de um tributo instituído em 2000 e alterado em 2001, mais de 20 anos atrás.

Feitos esses breves comentários, voltamos ao título deste artigo. Tanto tem se falado sobre simplicidade e segurança jurídica e, ainda assim, a reforma tributária, em sua atual versão, mantém na Constituição uma porta aberta para a instituição de uma espécie tributária que traduz tudo, menos previsibilidade e estabilidade.

Nesse sentido, poderiam ser adotados dois caminhos para aumentar a segurança jurídica no caso das Cides. Um primeiro, mais radical, seria simplesmente a eliminação da competência da União Federal para a instituição dessas contribuições.

Com efeito, a União já possui a competência residual para a instituição de novos impostos que integrariam o esquema de repartição de receitas tributárias, e não nos parece que este verdadeiro “cheque em branco”, que são as contribuições interventivas, seja necessário como uma forma de financiamento do gasto público federal. O que se perde com a falta de regime jurídico é mais do que o que se ganha atribuindo esta competência à União.

Uma alternativa moderada para se lidar com a insegurança trazida pelas Cides seria mantê-las no sistema, mas estabelecendo na Constituição ou mesmo no CTN um marco legal para essas contribuições.

Ao não lidar com as Cides, o Congresso permite que a União siga se valendo deste instrumento que, na falta de uma regulação mais detalhada, pode facilmente ser instituído com desvio de finalidade e tornar-se uma espécie de “imposto” com finalidade específica, atropelando o modelo constitucional de federalismo fiscal.

Fonte: Consultor Jurídico

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