OPINIÃO – Cobrança dos adicionais de ICMS destinado aos fundos de combate à pobreza

Por Pedro Simão e Sávio Hubaide

A recente publicação da Lei Complementar nº 194/2022 buscou sanar uma grande controvérsia relativas à definição das alíquotas de ICMS, sobretudo no que diz respeito aos princípios da seletividade e da essencialidade. Enquanto estados e o Distrito Federal há muito adotavam alíquotas majoradas para mercadorias e serviços indiscutivelmente essenciais como combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, a Lei Complementar nº 194/2022 definiu que a incidência do imposto sobre esses bens está limitada à alíquota geral, que varia entre 17% e 18%.

Em que pese a louvável tentativa de atender aos princípios constitucionais da seletividade e da essencialidade, bem como ao tema nº 745 de repercussão geral, já decidido pelo STF, a Lei Complementar nº 194/2022 deixou de se manifestar sobre quais serão as implicações da redução da alíquota sobre esses bens essenciais no que se refere à cobrança do adicional destinado aos Fundos de Combate à Pobreza, o que acabou sendo tratado de forma diversa pelos estados e pelo Distrito Federal.

Em breve histórico normativo, os Fundos de Combate à Pobreza foram instituídos pela Emenda Constitucional nº 31/2000, que acrescentou o artigo 82 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), prevendo que os estados e Distrito Federal, para custear os Fundos, poderiam instituir adicionais de até 2% na alíquota do ICMS, sobre os produtos e serviços considerados supérfluos. Além disso, tal adicional não estaria sujeito às regras de repartição de receitas com os municípios.

Posteriormente, foi editada a Emenda Constitucional nº 42/2003, que modificou a sistemática dos Fundos. De um lado, acrescentou um requisito adicional ao artigo 82, §1º, do ADCT, qual seja, além do limite de 2% e da cobrança sobre produtos e serviços supérfluos, suas condições deveriam ser definidas em lei complementar.

Embora essa lei complementar de caráter nacional jamais tenha sido editada, o não cumprimento de um dos requisitos previstos no artigo 82, §1º, do ADCT, não impediu que diversos entes federados instituíssem ou continuassem cobrando o adicional destinado aos Fundos de Combate à Pobreza, por vezes em patamares superiores ao teto de 2%, como ocorre até hoje, após a Lei Complementar nº 194/2022, no Estado do Rio de Janeiro.

Não bastasse, a Emenda Constitucional nº 42/2003 pretendeu convalidar todos os fundos até então instituídos, de tal modo que os novos requisitos passariam a ser exigidos somente para aqueles instituídos após sua publicação. Nesse sentido, o artigo 4º da Emenda dispôs que os adicionais criados até aquela data, naquilo em que estivessem em desacordo com os requisitos do ADCT, vigorariam até o ano de 2010.

Ocorre que, de forma não surpreende, quando próximo da mencionada data limite, foi editada a Emenda Constitucional nº 67/2010, que prorrogou por tempo indeterminado a vigência daqueles Fundos instituídos até a Emenda nº 42/2003, ainda que em desacordo com as normas constitucionais.

Consequentemente, a constitucionalidade desses fundos que se tornaram incompatíveis com a Constituição foi submetida ao Supremo Tribunal Federal. Num primeiro momento, a análise jurisprudencial leva a crer que o STF pacificou o entendimento de que os Fundos instituídos antes da Emenda nº 42/2003 foram convalidados, ainda que contrários ao texto das Emendas nº 31/2000 e da própria 42/2003. Diversos são os precedentes que mencionam a suposta jurisprudência pacífica da corte, a exemplo do ARE 1.304.360 (relatoria do ministro Edson Fachin), AI 592.982 (relatoria do ministro Luís Roberto Barroso) e RE 576.283 (relatoria do ministro Alexandre de Moraes).

Todavia, a verificação da origem desse entendimento aparentemente incontroverso demonstra que foi utilizada como fonte uma decisão monocrática proferida pelo então ministro Carlos Ayres Britto, na ADI 2.869. Nesse julgado, a decisão concluiu pela perda de objeto da ação, examinou a convalidação dos fundos pela Emenda nº 42/2003 em apenas um parágrafo, o que não condiz com a complexidade do tema, e em caráter obiter dictum, haja vista que a razão de decidir foi a alteração dos dispositivos constitucionais que haviam originalmente embasado a ação. Posteriormente, decisões monocráticas e acórdãos de ambas as turmas confirmaram o entendimento pela convalidação.

No RE 508.993, o ministro Luiz Fux proferiu voto-vista por meio do qual propôs que a matéria fosse submetida ao Plenário do STF, para julgamento em sede de repercussão geral. O voto menciona que o Órgão Pleno já havia decidido que o ordenamento brasileiro não admite a figura da constitucionalidade superveniente, enquanto as turmas vinham proferindo acórdãos no sentido de que a Emenda nº 42/2003 teria validado os fundos instituídos em desacordo com a Constituição. No entanto, a proposta foi vencida.

Desde então, o Pleno manifestou-se sobre a matéria somente no agravo regimental interposto na Suspensão de Tutela Provisória nº 107. Na oportunidade, o recurso não foi provido, em decisão que utilizou como fundamento excerto de voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes em outro julgado, no qual foi adotada a tese de que os Fundos incompatíveis com os dispositivos constitucionais instituídos até a Emenda nº 42/2003 permanecem vigentes, até que seja editada a lei complementar.

Percebe-se, portanto, que pela deficiente formação da jurisprudência, seria desejável que o Órgão Pleno do STF examinasse o mérito da controvérsia, em precedente com força vinculante proferido em repercussão geral, para, de fato, decidir sobre a possível constitucionalidade superveniente dos Fundos que se encontrem no contexto acima relatado.

Diferente é o caso daqueles fundos instituídos pelas leis ordinárias estaduais após a publicação da Emenda nº 42/2003. Nessas situações, o STF entende que os fundos são válidos somente naquilo que não conflitarem com as mencionadas emendas, ou seja, todos aqueles instituídos após 31/12/2003 devem observar o ADCT, incidindo apenas sobre bens e serviços supérfluos, a exemplo do RE 1.258.477.

Nesse contexto, a partir da entrada em vigor da Lei Complementar nº 194/2022, foram reconhecidos como como bens ou mercadorias essenciais os combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, situação essa que impede que os entes tributantes cobrem o adicional destinado à composição dos fundos sobre essas operações e prestações.

Fonte: Consultor Jurídico

Posts relacionados

Deixe um comentário