OPINIÃO – Criminalização da lavagem de dinheiro não protege a administração da Justiça

André Luís Callegari/Raul Linhares

Voltamos ao tema sobre quais bens jurídicos são protegidos a Lei de Lavagem de Dinheiro. Há diversas posições na doutrina que defendem que a criminalização da lavagem protege: a) a administração da Justiça; b) a ordem socioeconômica; c) ambos, ou seja, trata-se de um delito pluriofensivo. Ainda há setores minoritários que defendem que a criminalização da lavagem protege o mesmo bem jurídico tutelado pela infração penal antecedente ou, ainda, que busca combater a criminalidade organizada.

Há, portanto, posições doutrinárias e jurisprudenciais divergentes que sustentam, com base em fortes argumentos, que a criminalização da lavagem de dinheiro protege um determinado bem jurídico — postulado básico indispensável ao Direito Penal, a partir da função da garantia da teoria do bem jurídico. O propósito do presente trabalho é, por ora, argumentar que o bem jurídico tutelado não pode ser a administração da Justiça. Inicialmente por uma razão singela: todo delito, de uma forma ou de outra, atinge também a administração da Justiça, porque coloca em xeque a descoberta do autor do delito quando o agente adota estratégias voltadas a garantir a própria impunidade. Isso se verifica desde um simples homicídio até um complexo crime contra o sistema financeiro nacional. Em qualquer caso, a administração da Justiça se encontrará também ameaçada quando não se descortina o autor do delito ou o seu objeto material.

De qualquer sorte, o bem jurídico tutelado administração da Justiça, no que tange à ocultação ou ao recebimento de valores de origem delitiva, já estaria coberto pelo delito de receptação ou favorecimento real. Portanto, não haveria necessidade da tutelar o bom funcionamento da Justiça por meio da lavagem de dinheiro. A dupla punição pelo crime antecedente e o de reciclagem poderia caracterizar um bis in idem, ou seja, uma dupla punição pela consequência natural do ciclo delitivo.

De outro lado, como justificar que a lavagem possa ter pena superior ao delito prévio que conduziu à ofensa à administração da Justiça? Em muitos casos, se o argumento é a proteção do bom funcionamento da Justiça em relação ao delito prévio, não se justificaria que a pena da lavagem seja superior ao delito que se evita descobrir com a ocultação dos valores. E isso ocorre desde uma contravenção penal até determinados delitos patrimoniais ou contra o sistema financeiro. Nesses casos, teríamos uma super penalização do delito posterior em relação à proteção do delito precedente (administração da Justiça). Nesse sentido, quando se fala no delito de encubrimiento do Código Penal espanhol, o legislador veda expressamente que a pena exceda a do delito antecedente (artigo 452, CP). O mesmo deveria valer para o delito de lavagem de dinheiro, embora na legislação espanhola a vedação não tenha a validade para a reciclagem, mas, as penas mínimas de lavagem são inferiores às do Brasil.

Desde uma perspectiva legislativa ou de política criminal, é interessante a referência à crítica formulada por Faria Costa, para quem “Criar um tipo legal de delito para, desse modo, desenvolver melhor ou mais facilmente, de maneira legal, qualquer tipo de atividade persecutória constitui uma atitude político-legislativa pouco clara que, ademais disso, pode ter efeitos perversos” [1]. A crítica revela que a ideia da criação de um tipo penal de lavagem como reforço da investigação, porque poria em jogo a administração da Justiça ao dificultar a descoberta da origem delitiva, coloca em jogo o próprio Direito Penal.

Isso não significa que a lavagem de dinheiro não atinja ou não possa atingir outros valores ou bens dignos de tutela jurídica (do que pode ser exemplo a administração da Justiça). Ao contrário, admitimos que há um conjunto de interesses possivelmente violados por essa prática, motivo pelo qual é fácil compreender o posicionamento de alguns autores para os quais a lavagem de dinheiro é um crime que também atinge o bom funcionamento da Justiça. Não compartilhamos, entretanto, desse posicionamento, porque entendemos que a ofensa (reflexa) a uma pluralidade de interesses é um elemento natural em boa parte das figuras criminais — e de boa parte das próprias condutas sociais; bem como porque, com esse posicionamento, há um enfraquecimento do referencial interpretativo do tipo penal — a partir da função do bem jurídico enquanto critério limitador da amplitude do tipo.

[1] COSTA, Jose de Faria. El blanqueo de capitales. In: ARROYO ZAPATERO, Luis; et. al. Hacia un Derecho Penal Económico Europeo: jornadas en honor del Profesor Klaus Tiedemann. Madrid: BOE, 1995. p. 668.

Fonte: Consultor Jurídico

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