PREJUÍZO BILIONÁRIO – Só em São Paulo, litigância predatória é responsável por 337 mil processos por ano

Por Tiago Angelo e Danilo Vital

A litigância predatória é responsável por uma média de 337 mil novos processos por ano só em São Paulo, e por um prejuízo anual de cerca de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos. É o que aponta levantamento feito pelo Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). 

O núcleo pretende divulgar em breve um estudo com o detalhamento desses dados. O levantamento leva em conta as demandas consideradas predatórias identificadas entre 2016 e 2021. Se considerado todo esse período, o prejuízo pode alcançar R$ 16,7 bilhões. 

Para chegar a esse valor, o Numopede do TJ-SP levou em conta uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o custo médio por processo (R$ 8.270), o que não inclui despesas comuns, como perícias técnicas, múltiplos recursos ou custos indiretos das partes, como a contratação de advogados.

O levantamento classificou 503 casos envolvendo litigância predatória. Cada caso reúne diversos processos sobre um mesmo tema. Se um juiz comunicar um número grande de ações que tenham empréstimo consignado como tema, e houver indício de que se trata de litigância predatória, todos os processos são considerados um caso.

Em Ribeirão Preto, por exemplo, um único caso envolvendo ações de exibição de documentos e de inexigibilidade de dívidas e de multas de trânsito foi responsável por mais de 50 mil demandas no Poder Judiciário.

Segundo o juiz Felipe Albertini Nani Viaro, do Numopede da Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo, o núcleo identificou o uso abusivo de pedidos de tutela de urgência, de gratuidade de Justiça, de inversão do ônus da prova e de dispensa de audiência de conciliação e instrução, além de processos ajuizados sem o conhecimento da parte autora. 

“Uma vez identificada uma movimentação processual atípica, o Numopede produz estudos sobre as características dessas ações e algumas boas práticas utilizadas para enfrentá-las. Esses dados são divulgados para os juízes para que possam avaliar nos casos de sua respectiva competência. Além disso, identificado algum crime ou infração disciplinar, esses dados são encaminhados para o Ministério Público e tribunais de ética para avaliação.”

De acordo com ele, a utilização da gratuidade para viabilizar o uso abusivo do Judiciário causa prejuízos aos cofres públicos e prejudica o acesso à Justiça e a razoável duração do processo “daqueles que efetivamente necessitam do Poder Judiciário”. 

“A mesma preocupação existe em relação ao uso de instrumentos voltados à tutela do consumidor em juízo, como a inversão do ônus da prova, notadamente quando há indícios de que a estratégia é utilizada para dificultar ou efetivamente inviabilizar a defesa do réu em juízo.”

Problema nacional

O tema é complexo e está em pauta no Superior Tribunal de Justiça. A resolução do problema vai depender dos limites que o juiz, a quem a lei dá poderes para disciplinar a marcha processual, deve respeitar quando identificar indícios de abuso do direito de ação. 

A possibilidade de o magistrado obrigar as partes a apresentar novos documentos capazes de lastrear minimamente o pedido feito em demandas repetitivas e massificadas está em discussão no Tema 1.198 dos recursos repetitivos, que será julgado pela 2ª Seção do STJ.

Para subsidiar o julgamento, o relator da matéria, ministro Moura Ribeiro, promoveu audiência pública na sede do tribunal na última terça-feira (3/10). O objetivo era ouvir associações, institutos, pesquisadores, entidades, advogados, representantes dos tribunais e a Advocacia-Geral da União.

O recurso ataca um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) julgado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ-MS), que fixou tese segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação de novos documentos que entender pertinentes.

Em Mato Grosso do Sul, assim como em São Paulo, foi identificado o mesmo itinerário envolvendo a litigância predatória: os advogados entram com reclamações no site consumidor.gov e ajuízam processos em nome de pessoas vulneráveis, com procurações outorgadas por instrumento particular.

Segundo estudo do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, há diversos casos de litigância predatória sobre, por exemplo, empréstimos consignados. As demandas, em sua grande maioria, tramitam em determinadas comarcas e são patrocinadas por um pequeno grupo de advogados e escritórios. 

O centro de inteligência listou 300 desses processos e concluiu que em 99% deles constam pedidos de dispensa de audiência de conciliação já na petição inicial; em 97%, o cadastro da parte autora na plataforma consumidor.gov foi preenchido com indicação de telefone fixo do escritório do advogado como se ele fosse a parte autora; em 83% dos casos, a procuração foi outorgada por instrumento particular; em 100% da amostragem, a procuração foi redigida em termos genéricos. 

Outros temas que estariam levando a casos de assédio processual em nível nacional são: planos de saúde, multas, serviços de telefonia, ações contra bancos, negativação indevida, dever de informação e Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos (DPVAT). 

O setor de transporte aéreo também se diz vítima do expediente. Na audiência pública do STJ, o advogado Marcelo Pedroso, representante da Air Transport Association, afirmou que há escritórios que “tornam o Direito uma mera oportunidade comercial”.

Segundo ele, há empresas que usam as redes sociais para captar clientes a partir de perguntas como: “Seu voo já atrasou nos últimos cinco anos?”. A partir daí, oferecem o ajuizamento de ações com petições genéricas feitas em lote e pedidos de Justiça gratuita. 

Enfrentamento pelo Judiciário

Para José Miguel Garcia Medina, sócio fundador do escritório Medina Guimarães Advogados, a litigância predatória deve ser enfrentada de maneira organizada por todo o Judiciário. 

“É muito difícil um juiz decidir isso isoladamente, por resultar inevitavelmente em interposição de recursos. E aquele que de fato quer realizar a litigância predatória vai buscar juízos de outras comarcas para exercer esse direito de maneira abusiva.”

Segundo ele, no entanto, é preciso separar a litigância predatória dos casos em que efetivamente várias pessoas precisam recorrer ao Judiciário para solucionar um problema comum. 

“Não se pode sacrificar situações em que, de fato, há danos e lesões causadas a um número indeterminado de pessoas que vão ajuizar suas demandas. Isso acontece sobretudo em decorrência de danos ambientais. É nessa seara que enfrentamos o maior problema nos dias de hoje.”

De acordo com Mariana Barros, sócia do Fragata e Antunes Advogados, toda a magistratura deve ser convocada para adotar medidas de combate à litigância predatória. 

“Isso seria um passo importante para dar um basta no crescente número de casos dessa natureza detectados nos últimos três anos em vários tribunais Brasil afora, sobretudo em demandas envolvendo Direito das Relações de Consumo e grandes fornecedores de bens e serviços.” 

Na esteira da Covid-19 e do aprimoramento de ferramentas tecnológicas em apoio ao processo judicial eletrônico, afirma ela, aumentou exponencialmente o ajuizamento de demandas massificadas, com sinais nem sempre evidentes de abusividade ou fraude.

Daniel Gerber, sócio do Daniel Gerber Advogados Associados, diz que a advocacia predatória fere as regras éticas da advocacia e “deturpa a bússola moral que deve reger qualquer pacto de cidadania”, estimulando o desejo de processar empresas. 

“Infelizmente, o próprio Poder Judiciário, através de decisões protecionistas que resguardam o devedor dos compromissos por ele assumidos, acaba estimulando essa prática, motivo pelo qual não apenas cabe aos juízes reprimir este tipo de situação, quando presentes os indícios de sua ocorrência, como, também, evitarem decisões que, em nome de uma proteção desmedida ao cidadão, faça com que ele não precise honrar os pactos que assume.”

Fonte: Consultor Jurídico

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