FISHING EXPEDITIONS – Na falta de lei, Judiciário evita que Coaf vire repositório de dados de suspeitos

Por Danilo Vital

As posições firmadas pelas cortes superiores brasileiras em relação ao uso de dados de inteligência financeira em investigações têm alcançado um importante objetivo: impedir que os órgãos de persecução penal tenham à disposição um repositório de informações, em desrespeito ao direito fundamental à proteção de dados.

Essa é a opinião de especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico depois de mais uma definição feita pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à forma de compartilhamento de dados entre órgãos do governo e agentes de persecução penal.

No mês passado, a 6ª Turma do STJ decidiu que é ilícita a requisição de dados financeiros feita pela autoridade policial diretamente ao Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A conclusão seguiu a linha firmada pela 3ª Seção do STJ em 2022, no sentido de que o acesso a essas informações só é possível mediante autorização judicial prévia.

Em comum nesses processos está o fato de que a obtenção dos dados foi feita a pedido do órgão investigativo — no precedente da 3ª Seção, o pedido foi feito pelo Ministério Público à Receita Federal. Os dados constavam do Imposto de Renda dos suspeitos.

Nesse sentido, a orientação não se enquadra, mas, em vez disso, acaba por complementar o que o Supremo Tribunal Federal julgou sobre o tema. Em 2019, o Plenário decidiu que é constitucional o compartilhamento de dados entre os órgãos de inteligência e fiscalização e o Ministério Público para fins penais.

Esse contato, em regra, é feito de ofício. O Coaf recebe informações das instituições financeiras e, se notar indícios de crime, prepara relatórios e os compartilha com a Receita. Esta, por sua vez, abre procedimento administrativo fiscal e, se identificar indícios de sonegação, fraude ou conluio, aplica multa e encaminha os autos ao MP.

O órgão de inteligência também pode avisar diretamente o MP ou a autoridade policial se a possibilidade for de crime de lavagem de dinheiro, conforme prevê o artigo 15 da Lei 9.613/1998 . Para todas as demais situações — principalmente as de requisição desses dados —, não há qualquer previsão legal.

Na opinião dos advogados consultados pela ConJur, o compartilhamento não pode ser feito fora das hipóteses expressamente autorizadas por lei. Isso porque a proteção dos dados, elevada a direito fundamental pela Constituição, submete-se ao princípio da legalidade estrita.

Permitir o preparo de relatórios por requisição, segundo eles, abriria a brecha para o uso de dados protegidos, ainda que não sigilosos, sem qualquer prestação de contas. É o que tem acontecido na prática, por causa da incapacidade brasileira de, até agora, estabelecer uma relação precisa entre serviços de inteligência e órgãos de persecução penal.

“É preciso ter muito cuidado com essa interação, exatamente para garantir que o Coaf não sirva como um repositório infinito de informações que fique à disposição das autoridades incumbidas da investigação criminal”, avisa o advogado e professor do Instituto de Direito Público (IDP) Ademar Borges.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Alaor Leite avalia a posição do Judiciário sobre o tema como definidora de cautelas procedimentais, com o objetivo de restringir o compartilhamento e de não instrumentalizar o Coaf como um braço onisciente do MP. “A função do Coaf não é perseguir individualmente. E nem poderia ser”, diz ele.

Sem previsão legal, que passe pelo juiz

Apesar de a jurisprudência brasileira indicar os limites para o compartilhamento de dados sensíveis, o tema acaba por representar um impasse. Todas as decisões citadas foram tomadas por maioria de votos e há ministros que defendem uma interpretação mais benevolente com a busca por provas.

Há, no Brasil, variadas formas de intervenção ou restrição de direitos fundamentais admitidas na investigação criminal e que são tratadas pela lei de maneira pouco específica ou aprofundada. Um exemplo é o fato de, da interceptação telefônica ao uso do geo-fencing, tudo ser tratado como quebra de dados telemáticos.

Nesse cenário, a ausência completa de previsão de requisição de dados sigilosos a órgãos como a Receita Federal e o Coaf dificulta até mesmo a análise de um pedido judicial pelo juiz. Não há parâmetros para decidir, e nem mesmo os votos divergentes no STJ se prestaram a tanto. Resta uma análise pelo juízo de proporcionalidade e o uso da analogia.

Clarissa Oliveira, sócia do escritório Cascione Advogados, exemplifica apontando que, se as informações telefônicas ou telemáticas são compartilhadas com órgãos investigativos somente mediante ordem judicial, por analogia seria descabido que o mesmo não fosse aplicável às informações financeiras.

Segundo o advogado e professor da FGV Direito SP Adriano Teixeira, há um ideia no Brasil de que a autorização judicial basta para salvar qualquer coisa. “A autorização judicial não supre a autorização legal, porque vige o princípio da legalidade. Além disso, aqui estamos tratando de uma intervenção em um direito fundamental à autodeterminação informacional.”

Ademar Borges enxerga a reserva de jurisdição como uma forma de estabelecer um patamar mínimo de proteção a esses direitos, ainda que a lei seja frouxa, falha ou inexistente. Em sua avaliação, é um erro tratar do tema como se fosse exclusivamente ligado ao direito à privacidade e ao sigilo bancário.

Separação informacional

A incômoda proximidade entre os cada vez mais atuais e importantes órgãos de inteligência financeira e os responsáveis pela investigação criminal é um tema atual no mundo todo, mas tem como possível solução um modelo bem mais antigo, adotado pela Alemanha em seu processo de “desnazificação” após a Segunda Guerra Mundial.

Sob o controle de Hitler, havia um Estado que detinha poder total: era onisciente e onipresente, o que gerava a possibilidade de agir com base no que sabia. Na redemocratização, o formato escolhido foi o da separação informacional para nortear a interação entre os órgãos públicos.

“No Estado moderno, quando se concede onisciência a um órgão, não se concede poder. Essa é distinção entre as unidades de inteligência financeira e os órgãos de persecução penal. Quem sabe tudo não pode tudo. E quem pode, não deve saber de tudo”, explica Alor Leite.

Em sua análise, a possibilidade de contato direto entre inteligência financeira e persecução penal sugere uma tentativa de desburocratizar a investigação em um momento em que ela é ainda incipiente. O relatório do Coaf não seria o ato principal, mas um meio de indicar quais diligências posteriores seriam necessárias.

“A ideia de lastrear pedido de busca e apreensão em informações financeiras obtidas junto ao Coaf sem autorização judicial soa como fishing expedition (pesca probatória)“, critica Clarissa Oliveira. Isso fica claro no caso concreto julgado pela 6ª Turma, em que havia indícios de lavagem de dinheiro e a solicitação ao órgão de inteligência foi de dados referentes a período de seis anos.

Em artigo sobre o tema, Adriano Teixeira afirma que a relevância das informações que são produto de análise de órgãos como o Coaf no processo penal depende basicamente da licitude do modo de obtenção e transmissão das informações aos órgãos de persecução. E ele contesta seu valor enquanto prova. “Um relatório desses não tem valor probatório. Ele pode servir como indício para outras investigações, mas não é uma peça de prova em sentido estrito.”

Tanto no caso de envio de dados pela Receita quanto pelo Coaf, a comunicação ao Ministério Público não implica a ocorrência de crime. Essa avaliação cabe exclusivamente ao órgão investigativo e deverá ser submetida ao juízo da causa, posteriormente.

Segundo Ademar Borges, há no Brasil uma grande tolerância com o manejo de meios de obtenção de provas não previstos em lei. “A gente não pode inferir que exista autorização implícita no ordenamento jurídico para que as autoridades encarregadas se valham de qualquer meio de obtenção de prova que imaginarem possível”, diz ele.

“O meio de prova tem de estar previsto em lei. Especialmente quando restringe o direito fundamental à proteção de dados.”

Fonte: Consultor Jurídico

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