OPINIÃO – Ativos complexos e uso do stalking horse em processos de recuperação judicial

Maria Fernanda Mouchbahani Peralta

A previsão de venda de ativos está entre os mais utilizados meios de recuperação judicial. Contudo, efetivar tais alienações nem sempre será uma tarefa fácil. Especialmente quando envolver não apenas um bem, mas um conglomerado mais complexo, como uma unidade produtiva isolada (UPI), que consiste em uma forma de organização de bens, em que se destaca uma parcela do estabelecimento do devedor para alienação.

Referida venda, se devidamente prevista no plano de recuperação judicial (PRJ), dá-se livre de quaisquer ônus e não há sucessão do investidor nas dívidas do devedor (artigo 60 da Lei nº 11.101/2005 — LREF).

Isso faz com que a aquisição de ativos dentro do procedimento recuperacional se torne atrativa — os investimentos em distressed assets.

Não obstante esses incentivos, a aquisição em processos de insolvência não é tão simples e, diversas vezes, os leilões acabam sendo desertos.

Quando se tratam de ativos complexos, especialmente, como as UPIs aqui referidas, a necessidade de realização de uma due diligence aprofundada pode acabar desincentivando investidores.

Isto porque, ao contrário de uma aquisição empresarial no mercado, quando se trata de processos de insolvência há regras diferenciadas a serem seguidas, o que faz com que o devedor não possa, em princípio, simplesmente escolher o adquirente de seus ativos, acarretando maiores riscos ao potencial investidor.

Não obstante, a Lei nº 11.101/2005 prevê uma certa liberdade para o procedimento de alienação, especialmente a partir da Lei nº 14.112/2020, que inseriu o inciso V no artigo 142 da LREF, prevendo que a venda poderá se dar por qualquer modalidade, desde que aprovada nos termos da legislação.

Esse dispositivo confere, portanto, maiores perspectivas para que uma alienação seja colocada em prática, possibilitando que a devedora indique quem fará a oferta inicial antes que o processo competitivo se inicie.

E é isso que ocorre no procedimento de stalking horse, no qual normalmente há a concessão de um período para que determinado interessado — o stalking horse bidder — compreenda o funcionamento daquele ativo, realizando a due diligence, e apresente uma proposta vinculante, a qual se torna o preço mínimo pelo qual aquele bem ou complexo de bens será vendido.

Na sequência, se inicia um processo competitivo, sendo que a participação do stalking horse bidder tende a atrair mais concorrentes e a elevar o preço do ativo, além de garantir um valor mínimo para a operação.

Esse procedimento ganha especial relevância considerando a disposição incluída na LREF — também a partir da reforma — de que os ativos podem ser alienados, em terceira praça, por qualquer valor, não cabendo a alegação de preço vil (artigo 142, § 2º-A, V, c/c § 3º -A, III).

Assim, a utilização do stalking horse beneficia tanto os credores quanto a devedora. E, ao mesmo tempo, concede vantagens ao investidor que assume a função de stalking horse bidder e que pode negociar com o devedor, definindo as estruturas do negócio.

Usualmente se garante a ele a possibilidade de igualar ou de cobrir o maior lance como forma de mitigar o risco por ter dispendido tempo e dinheiro para diligenciar o ativo e apresentar uma oferta inicial e vinculante. Normalmente se garante, ainda, o reembolso de despesas e uma taxa de rescisão ao stalking horse bidder, caso fique vencido no certame. 

Apesar de não ser uma figura expressamente prevista em lei, o stalking horse já foi utilizado tanto em recuperações judiciais[1], quanto em falências[2] brasileiras. 

Tal procedimento, como dito, respalda-se no artigo 142, V, da LREF, competindo ao devedor incluir as respectivas cláusulas no PRJ e à AGC — órgão competente e soberano para tanto — para aprovação (ou não) de seus termos que posteriormente irão para a homologação judicial. Está, ainda, em consonância com os princípios norteadores da recuperação judicial, na medida em que visa a garantir a venda do bem, a maximizar o seu valor e, consequentemente, ao melhor endereçamento do interesse das partes.

Além disso, não obstante suas peculiaridades, o stalking horse continua garantindo um processo competitivo aberto, podendo outros interessados oferecerem lances pelo bem, não havendo que se falar em prejuízo de outras partes, ressalvados, obviamente, eventual uso fraudulento do negócio e ilegalidades específicas identificadas no caso concreto.

No caso do Grupo Estre[3], houve um enfrentamento expresso, pelos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acerca da legalidade do negócio.

Diante da alegação de credor de que haveria um favorecimento exacerbado ao primeiro proponente (stalking horse bidder), os desembargadores consignaram que: o negócio de stalking horse não representa, por si só, qualquer irregularidade; referido procedimento garante uma proposta vinculante e um preço base; observa o interesse da coletividade de credores, bem como o da devedora; e obstaculiza a realização de leilões com lances muito baixos.

Além disso, considerando o processo de análise do stalking horse bidder, entendeu-se que não há qualquer irregularidade em lhe conceder incentivos e proteções, tais como: direito de igualar ou de cobrir oferta apresentada por outro interessado (right to match ou right to top) e o estabelecimento de break-up fees, por exemplo. No caso concreto, referida taxa foi fixada em 6,5% do valor do lance e ratificada pelo TJSP, considerando que foi aprovada pela assembleia geral de credores. 

Ainda mais recentemente, em 2023, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco também se debruçou sobre o tema, na recuperação judicial do Estaleiro Atlantico Sul[4], consignando que o stalking horse contou com a devida publicização e aprovação maciça dos credores.

Não sendo uma figura expressamente prevista em lei, cabe ao Judiciário e à doutrina delinearem contornos para o funcionamento do stalking horse em recuperações judiciais. Destaca-se, ainda, a necessidade de tal procedimento ser aprovado pelos credores.

[1] Vide RJ nº 0203711-65.2016.8.19.0001 (Grupo Oi – TJRJ); RJ nº 0029741-24.2016.8.19.0001 (Grupo Albengoa – TJRJ).

[2] Vide falência do Banco BVA (autos nº 1087670-65.2014.8.26.0100 – TJSP).

[3] Agravo de instrumento nº 2230472-34.2021.8.26.0000 – TJSP.

[4] Agravo de instrumento nº 0012227-71.2022.8.17.9000 – TJPE.

Fonte: Consultor Jurídico

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