OPINIÃO – Da responsabilidade do sócio de pessoa jurídica encerrada irregularmente

Por Eduardo Almeida Fabbio

Fato corriqueiro nas demandas executórias é o polo passivo integrado por pessoa jurídica (geralmente sociedade limitada) abandonada, inativa, sem bens, sem atividade e sem encerramento regular.

Diante de tal situação, é comum que os credores tentem atrair os sócios da empresa abandonada para a lide por meio do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Entretanto, ordinariamente os incidentes são rejeitados sob o argumento de que “a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica” (STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp 2.259.858/DF, min. rel. Marco Buzzi, j. 22/5/2023).

Apesar de a jurisprudência afastar a desconsideração da personalidade jurídica ante o encerramento irregular de sociedade empresária, é curioso que os mesmos precedentes deixam anotado que o encerramento é de caráter irregular.

O que se defende no presente artigo é que, sendo irregular o encerramento de sociedade empresária, não é o caso mesmo de desconsideração da personalidade jurídica, mas de imediato afastamento da limitação da responsabilidade dos sócios.

Isso porque, a limitação da responsabilidade é benefício usufruído pelas pessoas jurídicas que se estabelecem dentro dos limites da regularidade prevista em lei.

Ora, pessoa jurídica regular é aquela que tem o seu ato constitutivo inscrito no competente registro, nos termos do caput do artigo 45 do Código Civil, que assim dispõe:

“Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.”

Da mesma forma, o encerramento de uma pessoa jurídica deve ser devidamente anotado no respectivo registro, nos termos do §1º do artigo 51 do Código Civil, abaixo transcrito:

“Art. 51. (…)
§1º. Far-se-á, no registro onde a pessoa jurídica estiver inscrita, a averbação de sua dissolução.”

Fora desses parâmetros, é certo que a pessoa jurídica não possui o status de regular, apesar de ter sua existência reconhecida e sendo denominada pelo Código Civil de sociedade em comum (irregular). É o que disciplina o Código Civil em seu capítulo “Da Sociedade em Comum”, cujo artigo 986 tem a seguinte de redação:

“Art. 986. Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples.”

A sociedade em comum ou irregular não possui, por sua vez, as limitações de responsabilidade típicas das pessoas jurídicas regulares:

“Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.”

Quis o legislador reservar certos benefícios, como a limitação de responsabilidade dos sócios, a possibilidade de requerer recuperação judicial ou falência etc., somente às pessoas jurídicas que observam as formalidades legais de constituição, administração e dissolução, ou seja, às pessoas jurídicas regulares.

A lei, de fato, não veda a constituição de pessoa jurídica irregular, entretanto, estabelece que ela não pode usufruir dos benefícios reservados às pessoas jurídicas regulares, inclusive a limitação de responsabilidade dos seus sócios.

Não se pode olvidar que uma pessoa jurídica irregular pode se tornar regular, bastando, para tanto, que providencie sua regularização, providenciando, dentre outras coisas, a inscrição do seu ato constitutivo no registro competente.

O encerramento irregular da atividade empresarial é, com efeito, uma das hipóteses pelas quais uma pessoa jurídica perde sua condição de regularidade.

Tal conclusão advém do quanto disposto nos artigos acima mencionados e é reforçado pelo artigo 1.080 do Código Civil, segundo o qual “as deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram”.

A incidência do artigo 1.080 do Código Civil decorre do fato de que o encerramento das atividades empresariais pela Executada se traduz em cabal e expressa afronta ao seu contrato social, em especial à cláusula de indica o seu objeto social.

Ora, os sócios firmam contrato (social) no sentido de executarem determinada atividade (objeto social). A paralisação das atividades se traduz, portanto, em desobediência expressa do aludido instrumento.

Ademais, também se verifica no encerramento irregular (abandono) da sociedade empresária a infringência à lei ante a recusa em providenciar a averbação da dissolução e a competente liquidação, o que permitiria o levantamento do passivo e providências para a sua satisfação.

Destaca-se, a propósito, precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ocasião em que se reconheceu que o encerramento irregular da pessoa jurídica permite a inclusão, no polo passivo da demanda, dos seus sócios, sendo desnecessária a instauração da desconsideração da personalidade jurídica:

“Ação indenizatória envolvendo prestação de serviços educacionais. Cumprimento de sentença. Honorários advocatícios sucumbenciais. R. despacho que teria indeferido o pedido de sucessão processual da empresa/executada. Agravo somente do escritório de advocacia/exequente. Encerramento irregular da pessoa jurídica/executada. Desnecessária instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Extinção da sociedade operada com violação à lei e ao contrato. Plausível a inclusão dos sócios no polo passivo da lide em razão da sucessão processual. Interpretação analógica do art. 110, do CPC. Decisão reformada. Dá-se provimento ao agravo do escritório/exequente, tudo nos estreitos limites do recurso.” (TJ-SP, 27ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2171409-15.2020.8.26.0000, des. rel. Campos Petroni, votação unânime, j. 06/04/2021) 

Nota-se que o desembargador relator do precedente supra anota que o encerramento irregular e sem o pagamento das dívidas existente, “configura infração contratual e legal”. Transcrevem-se trechos do decisum:

“Infere-se dos autos originais que, segundo a Certidão de Baixa de Inscrição (fl. 20, na origem), a empresa executada, ora agravada, teria encerrado suas atividades em21.12.08 (CNPJ baixado), sem honrar o pagamento de seus credores, de modo que cabível o instituto da sucessão processual previsto no art. 110, do Cód. de Proc. Civil, por analogia.
Ora, o encerramento irregular da empresa executada, sem o pagamento das dívidas existentes, configura infração contratual e legal.”

Por isso, o Tribunal de Justiça manifestou seu entendimento de que sequer é necessário o ajuizamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para buscar o patrimônio dos sócios da pessoa jurídica encerrada em infração contratual e legal, uma vez que, estando em situação irregular, não há obstáculos que impeçam que o patrimônio dos sócios da empresa devedora responda pelas dívidas por ela contraídas.

Reforça a tese aqui exposto a inteligência do verbete 435 da súmula do STJ, por meio do qual pacificou o entendimento de que se presume dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes:

Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.

Em que pese a edição do verbete supra ter por finalidade ajustar a dinâmica processual da execução fiscal, é certo que a realidade jurídica que ela enuncia logicamente não se limita a este tipo de ação.

Ideia contrária seria absurda. Não é crível que se possa sustentar que uma pessoa jurídica seja reconhecida como irregular em uma execução fiscal e, ao mesmo tempo, tida como regular em uma execução de título extrajudicial.

Com efeito, o STJ afirmou uma situação jurídica com consequências diversas, mas destacou uma dessas consequências na execução fiscal, o que não impede de admitir as inúmeras outras implicações em esferas processuais distintas.

O que importa é que, seja qual for a relação processual existente entre as partes, “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes”.

Em relação à execução fiscal, essa presunção, que é uma presunção que transcende a execução fiscal, produz a seguinte consequência: legitimidade do redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.

Na execução de título extrajudicial ou no cumprimento de sentença, não há razão jurídica para afirmar que a mesma presunção não produz a mesma consequência que ela produz na execução fiscal.

Havendo o encerramento irregular da pessoa jurídica, cabível, então, o redirecionamento da execução (ou cumprimento de sentença), por meio de mera petição, contra os sócios da sociedade empresária por eles abandonada.

Tal posicionamento, além de contribuir para o bom andamento das ações executivas, homenageia a sistemática do Código Civil em relação aos benefícios da limitação da responsabilidade aos sócios da pessoa jurídica que observa as formalidades previstas em lei.

Fonte: Consultor Jurídico

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