SELIC OU 1% – STJ busca pacificar controvérsia de 20 anos sobre índice de correção de dívidas

Por Danilo Vital

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça vai retomar, na quarta-feira (15/3), a missão de pacificar uma controvérsia que se estende há duas décadas sobre o índice adequado para corrigir dívidas civis, conforme o artigo 406 do Código Civil: a taxa Selic ou a taxa de 1% ao mês, prevista no artigo 161, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional.

O julgamento está paralisado por pedido de vista do ministro Raul Araújo. Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, a definição vai causar amplo impacto econômico no mercado, além de influenciar a política judiciária brasileira, por mexer com o custo-benefício do processo.

Para além dos argumentos jurídicos e econômicos, a questão envolve uma guerra de narrativas sobre a posição do STJ. Decidir pela Selic ou não seria uma mudança de jurisprudência? Haveria prejuízo à segurança jurídica? Alguém seria pego de surpresa pela adoção de uma ou outra tese?

Essa controvérsia tem sua origem nas transformações promovidas pelo Código Civil de 2002, passa pelo amadurecimento da economia brasileira e desagua no mais grave problema do Judiciário: a insegurança jurídica. Ao longo dessas duas décadas, o próprio STJ tem adotado uma jurisprudência instável, sem nunca alcançar um consenso.

O velho modo

A discussão sobre a taxa de juros para correção de dívidas surgiu após 2002 porque, sob o Código Civil de 1916, não havia margem de manobra. O artigo 1.062 indicava que a taxa dos juros moratórios, quando não convencionada, deveria ser de 6% ao ano.

A segunda limitação foi dada pela Lei da Usura (Decreto 22.626/1933): a vedação à fixação de juros superiores ao dobro da taxa legal do artigo 1.062 do Código Civil — ou seja, 12% ao ano. Ela criminalizava a conduta de fraudar os dispositivos da lei para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos.

Mesmo a Constituição Federal de 1988 foi promulgada com um limite para os juros: 12% ao ano, conforme o parágrafo 3º do artigo 192. A norma foi revogada pela Emenda Constitucional 40/2003, o que abriu as portas para o aumento dos juros sem o risco de a cobrança ser tipificada como crime.

Em 2002, o Código Civil mudou o cenário ao trazer no artigo 406 a previsão de que, quando tais juros moratórios não estiverem convencionados, devem ser fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

A taxa fazendária é a Selic, adotada pelo Banco Central como principal instrumento de política monetária e de controle da inflação desde 1999. Seu uso para corrigir débitos tributários é pacificamente aceito. O problema surge quando a dívida diz respeito a obrigações contratuais e extracontratuais.

Selic neles

A primeira e possivelmente mais influente contestação do uso da Selic foi feita pela I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em setembro de 2002, meros oito meses após a entrada em vigor do novo Código Civil. O enunciado 20 indica que a taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 do CC é a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, de 1% ao mês.

A justificativa coincide com as razões usadas atualmente pelo ministro Luis Felipe Salomão para propor o afastamento da Selic: como ela embute juros moratórios e correção monetária, seu uso é inviável quando esses dois consectários fluírem a partir de marcos temporais diferentes.

Em casos de responsabilidade extracontratual, por exemplo, os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, conforme prevê a Súmula 54 do STJ. Para responsabilidade contratual, o termo inicial da contagem é a citação. Já a correção monetária começa na data da prolação da decisão que fixou o seu valor, como diz a Súmula 362.

Em 2008, a Corte Especial deu uma guinada ao julgar o EREsp 727.842 para, apesar disso, adotar a Selic. E no ano seguinte definiu sob o rito dos repetitivos que, na execução de títulos judiciais prolatados sob a vigência do Código Civil de 1916, seria possível alterar a taxa de juros para refletir as regras do Código Civil de 2002. Esse julgamento teve menções expressas ao fato de essa taxa ser a Selic.

Não há consenso

Nas sustentações orais que precederam o julgamento que está em andamento na Corte Especial, ambas as partes pediram para o colegiado confirmar a própria jurisprudência. Os contra a Selic, em referência ao que vinha se aplicando até 2008. Os a favor dela, colacionando diversos julgados mais recentes do STJ.

Para o ministro Luis Felipe Salomão, no entanto, o tribunal nunca conseguiu gerar um consenso. “Mesmo após julgamento do EREsp 727.842, persistiram as duas correntes distintas de entendimento nas turmas de Direito Privado sobre qual seria a taxa do artigo 406 do Código Civil”, afirmou. “Nunca foi pacificada essa questão. Não é verdade que, em vários momentos, essa corte enfrentou esse tema”, acrescentou.

Na opinião de Leonardo Amarante, advogado da autora da ação, o precedente de 2008 simplesmente “não pegou”. Segundo ele, os Tribunais de Justiça estaduais têm verificado a inviabilidade de aplicar a Selic em dívidas civis, em respeito a um sistema de Direito Civil que historicamente adota taxas de juros e de correção monetária como fatores distintos de incidência.

“Matematicamente, é impossível usar a Selic, porque ela tem valor indistinto de juros e correção monetária: não sabe o que é o quê. Direito dá para discutir. Matemática não se discute. Espero que a Corte caminhe para a manutenção de um sistema que está sendo aplicado há cem anos”, afirmou à ConJur.

Um exemplo é o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que tem em vigor a Súmula 95, segundo a qual os juros do artigo 406 do Código Civil são aqueles do artigo 161, parágrafo 1º, do CTN. A Expresso Itamaraty, empresa condenada a pagar indenização à autora da ação, por outro lado, defende que a aplicação da Selic já vem sendo observada há 14 anos pelo STJ.

Os defensores da taxa fazendária citam não apenas julgamentos de repetitivos do tribunal apontando para o uso da Selic como também a recente tese do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual, a partir do ajuizamento da ação, os débitos trabalhistas devem ser corrigidos pela taxa básica de juros, conforme o artigo 406 do Código Civil.

“Não é verdade que o STF mandou aplicar a Selic aos débitos trabalhistas”, rebateu Luiz Fernando Pereira, que sustentou oralmente em nome do Conselho Federal da OAB como amicus curiae (amigo da corte) no caso. “O Supremo disse: aplica-se o artigo 406 do Código Civil conforme a jurisprudência do STJ. Hoje é a Selic. Se amanhã for 12% ao ano, assim o Supremo vai aplicar”, disse.

A busca por um urgente consenso vai continuar nesta quarta-feira, com a leitura do voto-vista do ministro Raul Araújo. A tendência, conforme ele já se manifestou antes, na 4ª Turma do STJ, é divergir. Na Corte Especial, outros 12 ministros poderão votar — a presidência só vota em caso de empate.

Fonte: Consultor Jurídico

Posts relacionados

Deixe um comentário