Opinião – Propriedade intelectual em xeque: a revolução da IA e o futuro da autoria

Jean Peguim/Marcella Martinez

A arte de criar sempre esteve no cerne da evolução humana, impulsionando nosso progresso desde os primórdios da civilização. Hoje estamos no limiar de uma nova revolução, protagonizada pela inteligência artificial (IA). Com máquinas sendo capazes não só de gerar soluções tecnológicas, mas também obras artísticas de vários tipos, a propriedade intelectual (PI), originalmente idealizada para proteger criações exclusivamente humanas, enfrenta o desafio de se adaptar a essa nova realidade.

A PI sempre foi uma salvaguarda para o intelecto criativo, garantindo que inventores e artistas tivessem controle sobre suas obras. No entanto, quando algoritmos começam a desempenhar um papel ativo na criação, surge uma questão crucial: como o conteúdo gerado por IA conversa com as proteções tradicionais concedidas pelo regime de PI? Se a PI se estabeleceu ao longo do tempo para fomentar as inovações tecnológicas e criativas, seja com as proteções de propriedade industrial ou Direitos Autorais, a IA traz um desafio inédito, que pode desestabilizar esse sistema previamente estabelecido.

Marcos internacionais, legislação nacional e as criações autônomas

Historicamente, a PI foi moldada por marcos importantes, como a Convenção de Paris (1883), que lançou as bases para a proteção de propriedade industrial, e a Convenção de Berna (1886), um pilar na defesa dos direitos autorais, ambas as quais culminaram no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo Trips) que atualmente regula os aspectos de propriedade intelectual em comércio internacional para países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No Brasil, as Leis 9.279/96 (Propriedade Industrial) e 9.610/98 (Direitos Autorais) formam a espinha dorsal do sistema jurídico de PI nacional. Muito do sistema de proteção definido por essas legislações vem pautado pelos regimes definidos nesses diplomas normativos internacionais e, a partir deles, define os critérios para concessão de proteções de PI, como  novidade, atividade inventiva e aplicação industrial para patentes e originalidade, manifestação da criatividade do autor e exteriorização para direitos autorais. Mas será que essas leis podem se manter relevantes frente às criações de IA, nas quais a linha entre o humano e a máquina se confunde?

Um caso emblemático que ilustra esse ponto é o do sistema Dabus, desenvolvido por Stephen Thaler. Desde 2018, Thaler busca registrar patentes em diferentes jurisdições em nome de sua IA, que havia criado, de forma autônoma, uma luz de emergência e um recipiente de alimentos. Essas invenções atendiam aos critérios tradicionais de patenteabilidade, mas o entrave surgiu na questão da autoria. No entendimento legal vigente, o inventor é necessariamente uma pessoa física, o que exclui as criações autônomas de IA desse escopo.

O dilema sobre quem deve ser considerado o criador levanta debates profundos. No Brasil, a legislação não permite que uma IA seja reconhecida como inventora. Em outros países, como na Austrália, uma decisão judicial inicialmente acatou o pedido de Thaler, reconhecendo Dabus como inventor, mas essa decisão foi posteriormente revertida em sede de recurso.

IA, criação artística e o ChatGPT

Esse impasse não se restringe ao campo das invenções. Na indústria do entretenimento, por exemplo, a IA já é uma realidade que ameaça alterar profundamente a criação artística. Recentemente, a greve do Screen Actors Guild (SAG) trouxe à tona preocupações sobre o uso da IA para gerar roteiros e recriar performances digitais, ressaltando a falta de regulamentação clara sobre o uso dessas tecnologias na produção criativa. O acordo celebrado ao final de 2023 para colocar fim à greve trazia entre as suas exigências o fato de que a IA não poderia ser utilizada sem que os roteiristas tivessem um controle maior do processo, inclusive trazendo obrigações mais expressas quanto à exigência de consentimento dos artistas envolvidos caso uma produtora queira utilizar conteúdo produzido por IA em suas obras. Ainda assim, a questão permanece longe de ser resolvida de forma abrangente e definitiva.

Outro ponto crítico é o uso dos dados pessoais e protegidos por direitos autorais para treinar as IAs. Ferramentas como o ChatGPT, por exemplo, utilizam vastas quantidades de dados como input para gerar novos conteúdos. Isso gera a necessidade de garantir que os dados empregados estejam devidamente protegidos, o que abre um novo campo de discussão sobre segurança e privacidade nas bases de dados e treinamentos de sistemas de IA.

Insuficiência das normas

A atual estrutura legal de PI pode ser insuficiente para lidar com essas transformações. Há quem defenda a criação de uma estrutura sui generis para proteger as criações de IA, equilibrando a necessidade de inovação tecnológica com os direitos dos criadores humanos. Questões como a titularidade das criações e a responsabilidade pelas invenções precisam ser repensadas. Será justo, por exemplo, reconhecer o sistema de IA como um cocriador? Ou seria mais adequado atribuir essa responsabilidade ao programador ou à entidade que opera a IA?

Além disso, o tempo de proteção para criações, sejam elas derivadas de IA ou não, também se coloca como uma questão controversa. Atualmente, a celeridade com que os processos criativos têm trazido inovações no mundo já começam a levantar questionamento sobre a extensão dos prazos de vigência das diferentes modalidades de proteção à PI. A rapidez com que a IA evolui e produz conteúdos também engrossa o caldo dessa discussão, podendo acelerar o quanto invenções e obras possam se tornar obsoletas antes do término do período de proteção. Isso levanta a reflexão sobre a possibilidade de implementação de prazos mais curtos para esse tipo de criação, de modo a refletir o ritmo acelerado da inovação tecnológica.

A propriedade intelectual, em sua essência, visa proteger o trabalho humano. Mas à medida que máquinas assumem papéis cada vez mais importantes no processo criativo, as leis atuais precisam se adaptar para continuar desempenhando essa função, sopesando o incentivo à inovação e a proteção dos interesses econômicos daqueles envolvidos nesse processo. A regulamentação da IA precisará encontrar um equilíbrio delicado: promover a inovação sem deixar de proteger os direitos dos criadores.

Nesse cenário, é essencial que as leis sejam flexíveis o suficiente para acompanhar os avanços tecnológicos, sem sufocar a criatividade humana. A era da IA não representa apenas uma nova fronteira para a tecnologia, mas também um campo de batalha para garantir que a propriedade intelectual continue a desempenhar seu papel vital na proteção do intelecto humano e na promoção do progresso social.

Essa revolução pode forçar uma redefinição dos conceitos fundamentais de criatividade e autoria, mas o compromisso com a inovação e a justiça deve permanecer inabalável. Afinal, o que está em jogo é a essência do que significa ser criador em um mundo onde humanos e máquinas compartilham, cada vez mais, o ato de criar.

Fonte: Consultor Jurídico

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