- 8 de agosto de 2025
- Governo , Jurídico
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Opinião – Precatório não é despesa. É devolução do que o Estado apropriou indevidamente
Aluízio Bezerra Filho
A palavra “precatório” deriva do latim deprecare, que significa rogar, suplicar. Essa origem remonta ao direito lusitano, em que o súdito que possuía um crédito contra a Coroa não podia executar diretamente o monarca. Era necessário apresentar um pedido formal — o chamado precatório de mercê — para que o pagamento fosse autorizado. Registros do século 16 mostram decisões judiciais determinando o pagamento de dívidas da realeza, o que consolidou a ideia de que o cumprimento de obrigações por parte do poder soberano dependia de uma requisição formal e reverente.
No Brasil, após a Proclamação da República em 1889, a ausência de um mecanismo impessoal para execução de sentenças contra o Estado gerou um cenário de clientelismo e insegurança jurídica. Durante a Primeira República, o pagamento de créditos judiciais pela Fazenda Pública não seguia critérios objetivos: influências políticas e prestígio pessoal eram determinantes para que determinados credores recebessem antes de outros. Embora as normas da época, ainda influenciadas pelas Ordenações Filipinas, admitissem até a penhora de bens públicos, essas medidas eram raramente efetivadas.
Foi com a Constituição de 1934, no governo de Getúlio Vargas, que se deu a virada institucional no regime de precatórios. O artigo 182 estabeleceu que os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, em virtude de sentença judicial, deveriam respeitar a ordem cronológica de apresentação e a dotação orçamentária. Proibia-se, ainda, a indicação de nomes específicos nas verbas orçamentárias destinadas ao pagamento de débitos judiciais, inaugurando o princípio da impessoalidade na quitação dessas dívidas.
Modelo aperfeiçoado do regime de precatórios
A Constituição de 1988 aprofundou e aperfeiçoou esse modelo. O artigo 100 da chamada Constituição Cidadã instituiu regras claras e rígidas: os precatórios deveriam ser pagos até o final do exercício seguinte ao da sua inclusão orçamentária, sob pena de sequestro de verbas públicas. A principal inovação foi a distinção entre precatórios de natureza alimentícia — relativos a salários, aposentadorias, pensões e indenizações por invalidez ou morte — e os precatórios de natureza comum, garantindo aos primeiros preferência absoluta.
Essa diferenciação não é meramente classificatória: a Constituição estabelece prioridade absoluta para o pagamento dos precatórios alimentares, que devem ser quitados antes de qualquer outro na ordem cronológica, conforme dispõe expressamente o §1º do artigo 100 da Carta Magna. Trata-se de uma opção constitucional clara pela proteção dos direitos de subsistência, reforçada por entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, que reconhece essa prioridade como imperativo de justiça material e respeito à dignidade humana.
Essa lógica de proteção — centrada na dignidade e na previsibilidade — revela a essência do regime constitucional dos precatórios enquanto instrumento de responsabilização estatal. Muito além de uma técnica orçamentária, o sistema de pagamentos por meio de precatórios expressa um compromisso do Estado com o cumprimento de decisões judiciais em bases impessoais, cronológicas e vinculantes.
Não se trata de privilégio
Assim, o regime de precatórios não configura privilégio, nem exceção: trata-se de um mecanismo institucional de contenção do arbítrio público. Ele impõe limites concretos à liberdade de gestão financeira dos entes federativos ao vinculá-los ao dever de reparar judicialmente os danos que causaram. É um modelo que traduz, em termos operacionais, a supremacia do direito sobre a vontade política.
Desse modo, o precatório não é uma liberalidade da administração, tampouco uma despesa discricionária: é a devolução de valores apropriados indevidamente, muitas vezes após anos de resistência judicial por parte da Fazenda. Trata-se de uma restituição forçada, determinada pelo Poder Judiciário com base no devido processo legal, após a constatação de que o ente público violou direitos individuais ou coletivos. Não é gasto, é indenização derivada de ilegalidade estatal.
Essa realidade tem tornado os precatórios, no Brasil, uma espécie de direito hereditário: os credores originais morrem antes de ver seus direitos respeitados, e seus herdeiros assumem a longa e incerta espera. A morosidade administrativa e legislativa no cumprimento das decisões judiciais compromete não apenas a efetividade dos direitos, mas a própria autoridade do Judiciário.
Retrocesso no regime de precatórios
É nesse contexto que se insere a Proposta de Emenda Constitucional nº 66/2023, que representa um dos mais graves retrocessos já propostos ao regime de precatórios desde 1988. Sob o pretexto de “alívio fiscal” e “apoio aos entes subnacionais”, a PEC propõe a institucionalização do calote estatal, ao extinguir a aplicação da Selic como índice de correção e fixar juros nominais de apenas 2% ao ano para os débitos judiciais.
A proposta cria um modelo assimétrico e iníquo: se a Selic estiver abaixo de 2%, ela se aplica; se estiver acima, o teto permanece. O Estado devedor, portanto, pagará sempre pela menor taxa possível, enquanto o credor arcará com o custo do tempo, da inflação e da desvalorização real do seu direito. Trata-se da normalização da inadimplência pública e da penalização do jurisdicionado.
Mais do que uma manobra fiscal, a PEC 66/2023 é uma afronta direta à Constituição. Viola os princípios da segurança jurídica, da coisa julgada, da isonomia e do acesso à jurisdição efetiva. Ignora, ainda, as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal que declararam inconstitucionais tentativas anteriores de criar moratórias disfarçadas no pagamento de precatórios.
Imposição de regras após condenação
Não se trata de uma negociação, mas de uma imposição unilateral. O Estado impõe as regras do jogo mesmo após ser condenado, deslegitimando o Poder Judiciário e transformando o sistema de Justiça em um teatro vazio, onde se reconhece o direito, mas se nega sua concretização.
Em síntese, a aprovação da PEC 66/2023 representaria não apenas um gravíssimo prejuízo financeiro aos credores, mas a completa desfiguração do regime constitucional de responsabilidade estatal. Ela compromete o princípio da confiança legítima, solapa a autoridade do Poder Judiciário e inverte a lógica da moralidade administrativa: pune o credor e premia o devedor contumaz.
Um Estado que se recusa a cumprir decisões judiciais renuncia à sua legitimidade democrática. E um Parlamento que endossa essa renúncia compromete as bases da própria Constituição que jurou respeitar.
A proposta não é um ajuste fiscal. É um ajuste institucional em desfavor do Estado de direito. Se aprovada, marcará um retrocesso histórico, cujas consequências não se medem apenas em cifras, mas na corrosão da confiança pública nas instituições. É preciso reconhecer a PEC 66 pelo que ela é: a formalização do calote como política de Estado. E a essa deformação da ordem constitucional, não se pode responder com silêncio.
Fonte: Consultor Jurídico