- 18 de agosto de 2025
- Governo , Jurídico
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House of cards – Manual de como tirar dinheiro de um país para seu próprio bem
Márcio Chaer
O noticiário da semana centrou-se no julgamento da decisão do ministro Alexandre de Moraes de prender o ex-presidente Jair Bolsonaro. Esmiuçaram-se não as filigranas, mas as estritas regras do devido processo legal. No entanto, essa peça do quebra-cabeças caída no chão prescinde de um contexto maior e necessário.
O itinerário da história da humanidade é um encadeado de manobras e guerras de conquistas. De início, na força bruta. Das muralhas da Idade Média às alfândegas modernas, da Guerra do Peloponeso, passando pelas duas guerras mundiais, até os tormentos do Oriente Médio, chegou-se à era das armas eletrônicas.
O Brasil, num contexto anacrônico, vive um repeteco desse paradigma. Alçado à condição de rei do mundo, o presidente dos Estados Unidos resolveu salvar a economia do seu país coagindo os demais países, de forma geral, e a Suprema Corte brasileira, em particular.
Em comum, os invasores, de todas as épocas e em todas as contendas, sempre usaram e usam desculpas esfarrapadas para “justificar” as agressões. O velho truque de fazer o mal em nome do bem que se repete — como uma carta branca para todo tipo de atentado.
Conto do vigário
Invocar valores como liberdade de expressão e direitos humanos ou alegar necessidade de neutralizar armas de destruição em massa (que nunca existiram) são embustes óbvios. Cortinas de fumaça para camuflar interesses econômicos.
Engodo nem sempre necessário. É legítimo que um presidente trabalhe para reforçar os cofres de seu país. Ainda que com recursos alheios. O que é desonesto é chantagear, extorquir, dizendo que a extorsão é para o próprio bem da vítima.
A coação praticada por Donald Trump contra o Brasil tem algo de circense — como ele próprio. Suas táticas, eventualmente suicidas (a se confirmar nos próximos capítulos), são tóxicas. Ele age como o enxadrista que, perdendo o jogo, vira a mesa.
A patranha tem sua lógica. Ao buscar a extraterritorialidade de seus decretos, ele apenas escancara uma estratégia que vem de longe. Trata-se de um plano que mistura preocupações legítimas com malandragens.
Guerra psicológica
Para combater o terrorismo, o narcotráfico, o crime organizado e a corrupção, as potências que mandam no planeta construíram um manual que impuseram a suas “colônias”. Nasceram daí truques nos moldes da “lava jato”. Formas habilidosas de neutralizar concorrentes para um alegado bem comum. A mesma tecla de sempre: invocar motivos nobres para praticar sacanagens.
O exemplo mais batido e ordinário: quebrar as pernas de países que dominam a produção agropecuária, alegando que estão destruindo o planeta. Mais tocante que isso, só jornais desses países denunciarem, diariamente, o “desmatamento”, ainda que seja em áreas distantes de qualquer bioma. Opiniões equivocadas baseadas em informações erradas. Mas a racionalidade e os fatos não têm importância alguma. O importante é eliminar a concorrência e iludir a plateia.
Quando Donald Trump fala em impor tributos extorsivos a produtos brasileiros e em negativar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, ele é falso ao invocar direitos humanos, liberdade de expressão ou mesmo defender Jair Bolsonaro. São lorotas. Ele quer mesmo, de passagem, aumentar seu superávit comercial com o Brasil e, no final das contas, atingir a China.
Atacar a última trincheira brasileira, o Supremo Tribunal Federal, é, na sua cognição, quebrar as pernas do país. E desmoralizar o governo Lula, subjugando-o, significaria cassar sua independência de escolher para que lado ir.
Coação, chantagem e extorsão
O uso da Lei Magnitsky, por vias transversas, implica deslocar o governo de Brasília para Washington. Raciocínio simples: obedeça-me ou eu lhe mato financeiramente. Os Estados Unidos já tentaram isso no Vietnã, na Coreia, no Iraque, no Afeganistão e na Baía dos Porcos. Não deu certo. E olha que o Brasil é um pouco maior.
Trump parece trabalhar com objetivos de curto prazo. Mas considere-se, por exercício apenas, que todos os desafetos e contrariados com a política americana unam-se em torno da posição brasileira. O que pode acontecer? Possivelmente, o contrário do que se pretende. Cooperação mútua e interesses em comum não se resumem a trocas comerciais. Um exemplo: foram apreendidas no Brasil, ano passado, cerca de 137 toneladas de cocaína.
A maior parte tinha por destino a Europa, o que tem explicação: as excelentes relações com os Estados Unidos, no campo técnico, quase que fecham as portas de saída das drogas para o território americano. Fosse aceitável o estilo Trump ou fosse ele o diretor-geral da Polícia Federal, possivelmente fossem retirados os policiais de Santos e da Amazônia. Enfrentar uma insurgência dessas contra um só país, como foi com o Vietnã, não seria difícil. O diferencial do momento é que os Estados Unidos resolveram chamar para a briga metade do planeta.
Afinal, mesmo as relações brasileiras mais amaldiçoadas, com as ditaduras esquerdopatas, neste momento, podem ser lidas como justificáveis. Vai bem pensar nas consequências de curto, médio e longo prazos.
Não é difícil enganar pessoas que querem ser enganadas. Trump poderia alegar também a existência de armas de destruição em massa, planos para construção da bomba atômica ou quaisquer outras ameaças à paz mundial.
‘Pega ladrão’, grita o ladrão
Fazer o mal em nome do bem é um truque infalível. Invoca-se um motivo nobre e tem-se carta branca para encurralar qualquer alvo. Mesmo que seja um país. Fosse um assalto na Praça da Sé, equivaleria ao meliante, depois do roubo, sair gritando “pega ladrão”.
Prematuro concluir se as vigarices de Trump são cortinas de fumaça para extorquir nações menos poderosas econômica e militarmente ou se, à maneira dos personagens Pink & Cérebro, ele quer dominar o planeta — ingressando no hall da fama junto com Nero, Júlio César, Napoleão Bonaparte, Mussolini e Hitler como mais um megalômano descabelado.
Conversa mole
A falsificação da realidade funciona até certo ponto. À primeira vista, pode parecer convincente defender valores como os direitos humanos e a liberdade de expressão para encurralar o Brasil. Para alguns, pode parecer verossímil sancionar o ministro Alexandre de Moraes. Mas a fabulação não resiste a cinco segundos de análise. O revólver da Magnitsky pode ser uma dessas armas que explodem na mão quando se aciona o gatilho.
Na vida real, Trump é um estelionatário que jamais se preocupou com direitos humanos ou qualquer valor parecido. Seu negócio é enganar o próximo e fazer qualquer coisa com que possa lucrar. Fantasiar-se de idealista é uma piada em que nem ele acredita. Faz o que qualquer palhaço faz com um microfone na mão: grita.
No seu papel de velhaco e trapaceiro, tudo lhe cai bem. Vergonhoso é o papel de quem sabe o que está vendo, mas faz que não vê. Na mesma linha, é legítimo que os Estados Unidos defendam seus interesses e aplaudam um presidente que, alegadamente, trabalha para carrear recursos para seu bem-estar.
Vergonhoso e inadmissível é que brasileiros se associem a um projeto que colide com seus próprios interesses. Dizerem-se “patriotas” é tão tragicômico quanto a mulher que apanha do marido dizer que a culpa foi sua.
A investida desequilibrada contra Alexandre de Moraes, na prática, o homenageia. Trump o promoveu à condição de herói mundial. Os efeitos práticos, no campo econômico, do “trumpaço” não chegam nem perto da gritaria anunciada.
Ilusões de ótica
Trump governa um país afundado em dívidas. Ele abriu mão de US$ 3,4 trilhões em impostos para hipnotizar seu eleitorado. No primeiro semestre, com as sobretaxas, ele conseguiu elevar a arrecadação de US$ 28 bilhões, do primeiro semestre de 2024, para US$ 152 bilhões, mas ainda está longe de cobrir o buraco todo. A projeção é que o pacote completo do tarifaço gere US$ 2 tri. A conta não deve fechar.
Não se sabe se Trump, em seu labirinto, tem alguma rota de fuga. Tampouco se ele vai fugir para a frente ou se vai recuar de novo. Um meme em japonês que passou a circular nesta quarta-feira (6/8) expõe o ringue de forma significativa. Sobre isso, quem está com a palavra é o povo americano.
Os brasileiros perderem-se em factoides como a prisão de quem lesa a pátria — que em guerras declaradas pune-se com corte marcial — é fazer o jogo do inimigo. Não se trata de julgar pessoas. O que está em questão é se o país deve-se governar por seus interesses ou pelos interesses de quem quer extorqui-lo.
Fonte: Consultor Jurídico