- 31 de dezembro de 2025
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Opinião – STJ reafirma que apenas sociedade empresária tem acesso à recuperação
Andresa Sena
No julgamento do Recurso Especial nº 2.159.844/SP, em 16/12/2025, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, reafirmou a orientação de que a recuperação judicial é instrumento destinado exclusivamente às pessoas jurídicas que efetivamente exercem atividade empresária, afastando sua aplicação às entidades constituídas sob a forma de associação. A decisão consolida o entendimento de que apenas organizações submetidas ao regime empresarial, isto é, aquelas que assumem os riscos próprios da atividade econômica com intuito de lucro, podem se valer do regime especial previsto na Lei nº 11.101/2005.
A controvérsia dizia respeito à interpretação do artigo 1º da Lei 11.101/2005, que delimita o âmbito de incidência da norma ao empresário e à sociedade empresária. Embora o artigo 2º apresente rol de entidades excluídas da lei, o fato de não mencionar expressamente fundações ou associações sem fins lucrativos não autoriza a ampliação interpretativa pretendida, uma vez que o regime empresarial decorre não apenas da forma jurídica, mas da própria teoria da empresa adotada no ordenamento brasileiro. Como enfatizado no acórdão, associações não se enquadram nesse modelo, pois não visam ao lucro nem distribuem resultados, requisitos essenciais para caracterizar a atividade empresária.
A 3ª Turma já havia fixado entendimento semelhante. Como ambas as Turmas de Direito Privado convergem na matéria, a discussão tende a se encerrar no âmbito do STJ, pois não há divergência capaz de justificar remessa à 2ª Seção.
Caso concreto
No caso dos autos, a Pró-Saúde— Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar teve sua recuperação judicial extinta pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o fundamento de ausência de legitimidade ativa. O tribunal paulista destacou que as associações civis sem fins lucrativos não se inserem no rol taxativo do artigo 1º da Lei nº 11.101/2005, nem ostentam natureza econômica compatível com o regime empresarial.
Parecer do MPF
A Procuradoria-Geral da República opinou pelo provimento do recurso, invocando precedentes pontuais que teriam admitido a recuperação judicial de associações “empresarializadas”. Contudo, o próprio parecer reconheceu que tais hipóteses são excepcionais e que a regra geral da lei é restritiva, posição que foi integralmente acolhida pelo ministro relator.
Julgamento pelo STJ
O ministro relator João Otávio de Noronha votou pelo desprovimento do recurso, enfatizando que a Lei nº 11.101/2005 não autoriza associações a requerer recuperação judicial, ainda que desempenhem alguma atividade econômica. Para o relator, a atividade econômica eventualmente praticada por associações é instrumental a sua finalidade institucional e não se confunde com exploração empresarial. Assim, ainda que gerem receita, não exercem empresa, porque não assumem risco com intuito de lucro nem possuem estrutura voltada à circulação de bens ou serviços no mercado competitivo.
Noronha acrescentou que uma interpretação extensiva colocaria em risco a própria racionalidade do sistema falimentar, já que o descumprimento do plano de recuperação implicaria necessariamente a decretação de falência, instituto incompatível com entes despersonalizados do lucro e cujos efeitos poderiam comprometer severamente a continuidade de serviços públicos relevantes prestados pela entidade.
Ademais, observou que o regime de insolvência civil, expressamente preservado pelo artigo 1.052 do CPC, oferece mecanismo negocial mais adequado às associações, servindo como verdadeira “concordata civil”.
Após o voto do relator, o ministro Marco Buzzi pediu vista e acabou por acompanhar o relator, sob o entendimento de que a exclusão das associações do regime recuperacional não implica a inexistência de mecanismos de reorganização financeira. Essas entidades podem recorrer a negociações extrajudiciais com os credores, a planos de reestruturação interna e a medidas empresariais aptas a restabelecer o equilíbrio de suas contas e a assegurar a continuidade de sua atividade assistencial.
Coerência sistêmica
Embora haja precedentes isolados admitindo a recuperação judicial de associações que teriam se “empresarializado”, trata-se de compreensão absolutamente excepcional, dependente de prova robusta da completa ruptura com o regime associativo, o que não pode ser aferido em sede de recurso especial. Em tais hipóteses, seria necessário comprovar não apenas a existência de atividade econômica, mas a efetiva submissão da entidade às normas do direito empresarial, o que não se verificou no caso.
Ao reafirmar que apenas sociedades empresárias podem valer-se do instituto, o STJ busca proteger a coerência da Lei nº 11.101/2005 e evitar que entidades sem finalidade lucrativa ingressem em um regime pensado especificamente para organizações que assumem riscos econômicos típicos do mercado competitivo.
Caso o STJ admitisse a recuperação judicial para associações, abrir-se-ia um precedente capaz de gerar desequilíbrios significativos, tanto no ambiente concorrencial quanto na prestação de serviços sociais. De um lado, associações civis frequentemente usufruem benefícios e incentivos fiscais relevantes, cujo custo é absorvido pela sociedade.
Permitir que, além disso, acessem as benesses da recuperação judicial, que normalmente envolvem diferimentos e deságios, poderia configurar um duplo privilégio não estendido às sociedades empresariais. De outro lado, haveria risco institucional: muitas associações prestam serviços sociais essenciais e complementam políticas públicas.
Se submetidas ao regime recuperacional, poderiam sofrer decretação de falência em caso de descumprimento do plano, ocasionando paralisação abrupta de atividades como hospitais, escolas comunitárias e centros de assistência.
Embora o caso não tenha sido julgado sob o rito dos recursos repetitivos, o ordenamento jurídico brasileiro avança para um modelo progressivamente alinhado ao sistema de precedentes. O artigo 926 do Código de Processo Civil determina que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Por essa razão, ainda que a decisão não seja vinculante, tende a exercer significativa força persuasiva sobre os juízes e tribunais que venham a examinar a questão.
Fonte: Consultor Jurídico


