OPINIÃO – Dedutibilidade de Juros sobre Capital Próprio em incorporações

Por Gabriel Santiago

Em um momento de trâmite avançado da reforma tributária sobre o consumo no Brasil, o governo federal ensaia alterar também a sistemática de tributação da renda. Por iniciativa do Executivo, uma das recentes medidas para alcançar esse objetivo é a apresentação do Projeto de Lei nº 4.258/2023 (PL 4.258/2023), cujo objetivo é extinguir os Juros sobre Capital Próprio.

Os JCP foram criados pelo artigo 9º da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995 (Lei 9.249/1995) e, tal como os dividendos e os juros, trata-se de um retorno de investimento pela utilização de capital por parte de uma sociedade. No entanto, os JCP destinam-se unicamente aos acionistas da sociedade, tal como os dividendos (portanto, são isentos ao nível do sócio). E, tal como ocorre em relação aos juros, a remuneração mediante JCP é considerada despesa financeira por parte da sociedade (por essa razão, são dedutíveis ao nível da sociedade). Assim, a legislação trouxe eficiência fiscal nas duas pontas.

O único ônus tributário do pagamento dos JCP é o recolhimento do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRF) à alíquota de 15% pela sociedade — em substituição à alíquota de 34% que a sociedade pagaria a título de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSL) sobre os lucros apurados previamente à distribuição de dividendos.

Os JCP são calculados mediante a aplicação de uma taxa de mercado (a Taxa de Juros de Longo Prazo) sobre o patrimônio líquido da sociedade.

Mas a legislação não viabiliza a dedução de todo o resultado desse cálculo. Só é possível deduzir os JCP até o maior valor entre duas alternativas relacionadas ao balanço patrimonial: 1) 50% do lucro do exercício; e 2) 50% do saldo dos lucros acumulados e reservas de lucros. Trocando em miúdos, a dedutibilidade dos JCP depende da existência de lucros — quanto maiores os lucros, mais JCP se pode deduzir.

A instituição dos JCP teve como principal objetivo desestimular o uso de fontes de financiamento de terceiros pelas empresas brasileiras. Afinal, para além das razões de mercado que justificam a contração de dívidas por uma sociedade, o superendividamento também traz vantagens fiscais.

Como o legislador brasileiro escolheu concentrar a tributação corporativa na pessoa jurídica e isentar a distribuição de dividendos, o financiamento via capital de terceiros afeta sensivelmente a arrecadação do IRPJ e da CSL. E não poderia ser diferente, já que os juros pagos para remunerar empréstimos reduzem o lucro apurado no exercício, impactando o valor a ser pago a título de IRPJ e CSL.

Como os dividendos não são tributados na sua distribuição aos acionistas, deduções ancoradas em dívidas podem gerar distorções na tributação da renda corporativa, revelando um tratamento desigual entre os contribuintes: sociedades que privilegiavam o financiamento mediante capital próprio recolhem mais IRPJ e CSL do que sociedades muito endividadas.

A instituição dos JCP buscou corrigir essa brecha ao incentivar o financiamento mediante o incremento do capital na sociedade. Por isso, os juros são sobre capital próprio, e não sobre capital de terceiros.

Contudo, o artigo 9º Lei 9.249/1995 não é explícito em relação à possibilidade de cálculo da dedutibilidade dos JCP com base em lucros que, ainda que componham atualmente o balanço patrimonial de uma sociedade (sucessora), tenham sido anteriormente do balanço patrimonial de uma sociedade que fora objeto de incorporação (sucedida).

Nessa controvérsia, a questão é se os saldos das contas de lucros acumulados e reservas de lucros de uma sociedade incorporada:

1) podem ser transferidos para as mesmas contas da sociedade incorporadora após a versão de todo o patrimônio da incorporada (“incorporação linha a linha” ou horizontal), sob o argumento de que a legislação não indica a rubrica sob a qual deve haver o aumento de capital na sociedade incorporadora; ou

2) não podem ser transferidos para as mesmas contas da sociedade incorporadora, mas apenas transferidos para a conta do capital social, já que todo o patrimônio líquido da incorporada comporia uma universalidade a ser destinada à formação de capital social.

No primeiro caso, os limites de cálculo da dedutibilidade poderiam ser maiores do que os limites anteriores ao evento da incorporação. No último caso, os juros deduzidos acima dos limites anteriores ao evento da incorporação poderiam ser glosados pela autoridade fiscal.

Ainda que o corriqueiro seja que se considerem os lucros da própria sociedade, os saldos dos lucros acumulados e das reservas de lucros de uma sociedade incorporada poderiam ser considerados pela sociedade incorporadora, para fins de dedutibilidade de JCP das bases de cálculo do IRPJ e CSL?

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) possui apenas três decisões sobre o tema. Em artigo na coluna Direto do Carf, desta ConJur, o professor Alexandre Evaristo Pinto muito bem analisou esses precedentes.

O único resultado favorável ao contribuinte foi no mais recente acórdão (Caso Santander), em que a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais [1] concluiu que as previsões dos artigo 226 e 267 da LSA apenas indicam que deve haver “algum aumento de capital” na sociedade incorporadora. Assim, inexistiria obrigatoriedade de que o aumento de capital fosse na conta do capital social.

Nas duas decisões anteriores, o Carf havia concluído que a extinção da incorporada torna irrelevante o passado contábil da incorporada [2]. Afinal, a incorporadora receberia o total da riqueza patrimonial devidamente avaliada sob a forma de um acervo líquido, perdendo a natureza individual das rubricas anteriores. Seria essa uma universalidade (composta de bens e direitos subtraídos de obrigações) a compor o capital social da incorporadora.

A consequência da incorporação seria o desaparecimento das contas contábeis de lucros acumulados de períodos anteriores e reservas da incorporada. Por essa razão, essa sistemática pressupõe necessariamente que se siga o caminho tão somente do “aumento de capital social” de certa sociedade (incorporadora), pois não se fala mais na existência de reservas ou muito menos de lucros acumulados da empresa extinta.

Dito isso, a possibilidade de transferência dos saldos dos lucros acumulados e da reserva de lucros para a incorporadora no contexto do cálculo da dedutibilidade dos JCP traz pontos de reflexão.

Inicialmente, retoma-se a discussão acerca da natureza jurídica do artigo 9º da Lei 9.249/1995. Para o professor Luís Eduardo Schoueri [3], os JCP correspondem a um conceito eminentemente de direito tributário, sem se ancorar nos conceitos de juros ou de dividendos trazidos pela legislação societária.

Se o conceito de JCP possuir efetiva autonomia em relação ao direito societário — e ao direito contábil —, a expressão “existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros” (§1º do referido artigo 9º) poderia englobar também os lucros reconhecidos e mensurados pela sociedade incorporada? De novo, a legislação não traz uma resposta.

Mas é importante relembrar que, no caso da incorporação de sociedades, não só a sociedade incorporadora sucede a incorporada em todos os seus direitos e obrigações (artigo 227, caput, da Lei das Sociedades Anônimas), mas a sociedade incorporada é responsável pelos tributos devidos pela incorporada até esta deixar de existir (artigo 132, do Código Tributário Nacional).

Além disso, cabe retomar as conclusões adotadas pela conselheira Livia De Carli Germano ao redigir o voto vencedor no mencionado caso Santander na 1ª Turma da CSRF. Para a conselheira, a observação da prática societária leva à conclusão de que nem sempre há aumento de capital após uma incorporação. Um bom exemplo seria a incorporação de sociedade que possua patrimônio líquido negativo (passivos em maior proporção do que os ativos). 

Neste último caso, a incorporação “linha a linha” seria a única forma de evitar uma redução de capital da sociedade incorporadora. Afinal, se a incorporação não ocorre dessa forma, os lucros acumulados ou reservas de lucros da incorporadora não são suficientes para absorver o prejuízo contido na incorporada. Nesse caso, a transmissão dos saldos de todas as contas da incorporada unicamente para a conta de capital social da incorporadora traria problemas de insolvência para esta última, salvo se houvesse um subsequente aumento de capital. A medida é uma forma, inclusive, de resguardar os credores da sociedade, que seriam diretamente impactados pela medida.

Falando da incorporação “linha a linha” para fins de maior dedutibilidade de JCP, claramente o objetivo seria obter maior eficiência fiscal, e não resguardar os credores. Portanto, a comparação acima é passível de críticas. De todo modo, questiona-se: a indefinição na forma de operacionalizar a incorporação pode abrir margens para que o contribuinte possa agir como melhor lhe convir, tal qual no exercício de uma opção fiscal?

Independentemente da resposta, a incorporação “linha a linha” apresenta uma interessante intersecção entre a contabilidade, o direito privado e o direito tributário. Espera-se que o Carf enfrente mais vezes essa questão e que possa esclarecer os limites da utilização dessa reorganização societária, especialmente em um contexto da aplicação do teste de propósito negocial e verificação de substância de atos realizados pelos contribuintes.


[1] Acórdão nº 9101-005.951. 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais. Processo nº 16327.001538/2010-79. Redatora conselheira Livia De Carli Germano. Julgado em 07 de fevereiro de 2022. Contribuinte: Santander Brasil Arrendamento Mercantil S/A.

[2] Acórdão nº 164.718. Terceira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes. Processo nº 19740.000258/2007-55. Relator conselheiro Leonardo de Andrade Couto. Julgado em 17 de setembro de 2008. Contribuinte: Banco Banerj S/A.

Acórdão nº 1401000.946. 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Processo nº 16327.001538/2010-79. Relator conselheiro Antonio Bezerra Neto. Julgado em 06 de março de 2013. Contribuinte: Santander Brasil Arrendamento Mercantil S/A.

[3] SCHOUERI, Luis Eduardo. Juros sobre capital próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da ‘Nova Contabilidade’. In: Roberto Quiroga Mosquera; Alexsandro Broedel Lopes. (Org.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). 1ed.São Paulo: Dialética, v. 3, p. 169-193, 2012.

Fonte: Consultor jurídico

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