Opinião – A cláusula de earn-out como ferramenta de gerenciamento de riscos e criação de oportunidades em operações societárias

Antônio de Pádua Faria Júnior/Maria Fernanda Penedo

Instrumento adotado pelo direito brasileiro na prática societária, a cláusula de earn-out, também chamada de “cláusula de contingenciamento de preço”, foi importada dos sistemas de Common Law. Trata-se de um mecanismo contratual que tem por objetivo precificar o valor de um negócio e criar as regras e condições para o seu pagamento, podendo ser materializado em um acordo próprio ou em uma cláusula de um contrato.

Comumente utilizado em grandes operações de M&A (fusões e aquisições), esta ferramenta, na realidade, pode ser utilizada em qualquer negócio societário, independentemente da complexidade da operação e das partes e valores envolvidos.

Para melhor conceituar o earn-out, trazemos a lição de Nelson Eizirik, segundo quem, “a cláusula de earn-out, portanto, configura-se como uma condição suspensiva, em que o dever do comprador de pagar parte adicional do preço estará subordinado a evento futuro e incerto delimitado pelas partes, baseado em verificações concretas de perdas, rentabilidade, contingências, entre outras. Com efeito, a pactuação da cláusula earn-out tem como consequência o diferimento de efeitos do contrato até que implementadas, ou não, as condições previstas no contrato”.[1]

Na prática, trata-se de uma cláusula que cinde o preço total de um negócio em duas parcelas, uma fixa e outra contingente ou adicional, o earn-out. Dessa forma, a parcela fixa do preço é paga logo no fechamento da operação, enquanto o pagamento da parcela contingente se dá de forma diferida, em momento posterior ou até de forma parcelada, ficando subordinado à ocorrência de uma condição prevista pelas partes, que deverá observar a previsão do artigo 121, do Código Civil. Ademais, as partes deverão estabelecer um prazo específico para que tal condição seja alcançada pelo vendedor, o “período de earn-out”.

Benefícios

Como um de seus atrativos, o earn-out tem o potencial de tornar uma operação mais precisa em termos financeiros, na medida em que pode criar condições para que as partes tomem decisões mais bem informadas acerca da avaliação da empresa-alvo e o preço a ser pago por ela, potencializando os ganhos de ambos os lados.

Quando bem estruturada, a cláusula permite também que as expectativas e interesses das partes sejam conciliadas de maneira mais estratégica, uma vez que possibilita a utilização de mecanismos que servirão para tornar a avaliação do negócio mais justa e realista, baseada em critérios objetivos que serão acompanhados e avaliados no decorrer do período de earn-out. Assim, cria-se um ambiente em que as partes passam a depender menos de informações financeiras e contábeis que refletem somente o passado e o momento presente do negócio.

Com efeito, o recebimento do earn-out pelo vendedor pode ficar subordinado ao alcance, pela empresa, de certas metas como, por exemplo, de resultados, receita, percentual de crescimento do negócio ou lucratividade.

A título de exemplo, o earn-out pode exercer um papel decisivo para viabilizar negócios em que certo produto ou ideia é avaliado pelo vendedor de forma muito valorizada tendo em vista o potencial comercial que ele enxerga, mas que um futuro comprador não está disposto a pagar por avaliar o negócio sob outro ponto de vista. Tal atitude é, obviamente, razoável e legítima, pois fundada no receio de apostar em um negócio que talvez ainda não seja bem sucedido, ou cujo desempenho atual não seja capaz de justificar o preço pretendido pelo vendedor.

É neste ponto das negociações que o earn-out se apresenta como um instrumento diferencial, inclusive tornando viáveis operações e negócios que, de outra forma, não se realizariam devido à impossibilidade de as partes conciliarem seus interesses e visões a respeito do negócio. Dessa maneira, as partes podem pactuar o earn-out com o intuito de aguardar o prazo para que o negócio ou um produto atinjam o estágio de maturação ideal para que, concretizando-se a performance esperada, o preço adicional seja pago ao vendedor.

Observa-se, assim, que o earn-out tem o potencial de diminuir a assimetria informacional entre vendedor e comprador, propiciando a previsão de uma condição que atrela o pagamento da parcela adicional do preço ao cumprimento de metas objetivas. Isso evita um processo de negociação do preço que, não raro, é moroso e desgastante e que, muitas vezes, leva à frustração do negócio.

Com esse instrumento contratual, torna-se possível compor as expectativas de ambas as partes de forma mais equânime e justa, uma vez que, de um lado, o vendedor terá a oportunidade de maximizar o seu ganho mediante o cumprimento de metas pela empresa, enquanto o adquirente terá a garantia de que somente pagará a parcela adicional do preço caso as condições avençadas tenham sido de fato alcançadas, podendo mensurá-las por critérios objetivos.

Em outro exemplo prático, pode-se imaginar um empresário que desenvolveu um software que acredita ter muito potencial comercial, mas que ainda se encontra em fase de testes. Ele deseja vender seu negócio acreditando que seu valor de mercado seja de R$ 30 milhões, levando em conta o desempenho que prevê para sua ferramenta. Um investidor interessado em adquirir esse produto realiza, então, uma avaliação (valuation) da empresa e conclui que o valor justo é, na verdade, de R$ 15 milhões, considerando o alto risco de que o software não alcance o desempenho desejado no mercado.

Neste caso, para que as partes não percam a chance de realizar o negócio, e sem deixar de lado as preocupações e interesses legítimos de cada uma, é recomendável que prevejam, no contrato de compra e venda da empresa, uma cláusula de earn-out que estabeleça que, caso a empresa consiga atingir um certo resultado com a comercialização do software em determinado prazo (condição), o comprador pagará uma parcela adicional ao preço para o vendedor (o earn-out).

Indo além, para garantir que a condição pactuada pelas partes seja alcançada, é possível prever que o vendedor da empresa permaneça no negócio durante o período de earn-out, na qualidade de administrador, por exemplo. Dessa maneira, ele poderá trabalhar para garantir o bom desempenho do negócio, justificando o recebimento da parcela contingente do preço.

Tal previsão pode ser um grande diferencial para certos negócios em que o vendedor é uma figura-chave, muitas vezes reconhecido no mercado, cujas características pessoais tenham sido essenciais para o sucesso da empresa. Portanto, a sua permanência no dia a dia da empresa durante o período do earn-out muitas vezes é a única forma de garantir que a meta e os resultados sejam atingidos, uma vez que, sem ele, dificilmente a empresa conseguirá o desempenho que precisa.

Portanto, a previsão de que o vendedor continuará na condução do negócio pelo período do earn-out tende a ser vista como uma garantia de que a empresa passará para as mãos do comprador de forma mais segura e com retornos garantidos, agregando mais valor à operação. Adicionalmente, pode ser uma oportunidade de sinalizar ao mercado e aos clientes que o negócio não alterará a sua identidade e padrões de qualidade, como é o caso de operações recentes envolvendo grandes marcas do setor de moda feminina.

Exemplos no mercado brasileiro

Em 2021, a marca de luxo “Carol Bassi” foi adquirida pelo grupo Arezzo (Arezzo&Co). Apenas a título de earn-out a Arezzo pode vir a pagar R$ 40 milhões aos vendedores, caso a marca cumpra certas metas até 2025. Para tanto, a sua fundadora, Carol Bassi, permanecerá no negócio durante o período de earn-out.

Outra aquisição de peso ocorreu em 2020, no mesmo setor, com a compra da marca NV pelo grupo Soma, por R$ 210 milhões. A operação também fez uso do earn-out para atrelar o pagamento de um valor adicional aos vendedores até 2026 caso a marca apresente resultados que superem o plano de negócios pactuado entre as partes.

Entretanto, em que pesem todos os diversos benefícios que este instrumento pode oferecer, todo o cuidado é necessário para traçar uma estratégia segura e tornar as obrigações previstas na cláusula claras e exequíveis. Para tanto, é fundamental contar com uma análise multidisciplinar de toda a operação, unindo a expertise não apenas jurídica, como também contábil, financeira e operacional.

Cuidados exigidos na prática – entendimento do STJ

Para ilustrar essa preocupação, temos a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp n. 2,117.094/SP, relator ministro Ricardo Bôas Villas Cueva, Terceira Turma, julgado em 05/03/2024). A controvérsia, que teve início sob a égide do Código Civil de 1916, versava sobre alegado descumprimento intencional de um plano de negócios previsto pelas partes em operação de aquisição de participação societária. A parte vendedora argumentou que tal plano não pôde ser cumprido em decorrência de atitudes da compradora, que obstaram o cumprimento da condição prevista pelas partes.

Em sua defesa, a compradora alegou que, nos termos do artigo 120 do Código Civil vigente à época dos fatos, seria necessário comprovar dolo específico para caracterizar o descumprimento da condição.

Em seu voto, o ministro relator do acórdão considerou entendimentos doutrinários diversos, destacando, porém, o princípio da boa-fé objetiva, que deve conduzir todo negócio jurídico a partir da colaboração mútua entre os contraentes, sendo certo que não é permitido às partes agir de forma a manipular os fatos e circunstâncias para impedir que a condição do negócio se realize.

No julgado, a Corte confirmou, de forma unânime, o direito da parte vendedora de receber o valor do earn-out devido à conduta maliciosa da compradora que acabou por inviabilizar o cumprimento do plano de negócios.

Conclusão

É próprio da cláusula ora analisada tornar as operações societárias, independentemente de seu vulto, mais complexas em razão da estrutura de direitos e obrigações que é criada pelas partes e cuja execução é diferida no tempo.

Por tal razão, é de suma importância que seja prevista com muita precisão e rigor técnicos e amparada não apenas na estratégia jurídica mais adequada ao caso, como também na avaliação contábil e financeira de especialistas, como já destacado.

Para tanto, é essencial que a condição para o pagamento da parcela adicional do preço esteja atrelada ao cumprimento de metas que possam ser objetivamente aferidas por ambas as partes. É comum que sejam utilizados o crescimento das vendas, o lançamento de novos produtos, a obtenção de licenças, o faturamento, o lucro, o valor do EBITDA, entre outros critérios, para avaliar o desempenho do negócio.

Tais indicadores devem ser apurados no curso do período de earn-out, sendo possível estabelecer avaliações periódicas, por exemplo, trimestrais, inclusive com a possibilidade de que, alcançadas metas intermediárias verificadas em tal periodicidade, o vendedor já faça jus a uma parcela do earn-out, escalonando o recebimento do valor total.

A previsão bem detalhada de cada critério que servirá para medir o desempenho da empresa, o método de avaliação e sua periodicidade, além do comportamento que as partes devem manter durante todo o período do earn-out, são essenciais para evitar dúvidas quanto à sua interpretação e futuros questionamentos e litígios.

Ademais, as partes devem se certificar de que a operação seja conduzida sempre pela boa-fé, prevendo a penalização de comportamentos que possam, objetivamente, criar obstáculos ao cumprimento da obrigação, ou que sejam prejudiciais à continuidade do negócio após o earn-out. Pode-se, por exemplo, prever o pagamento da parcela contingente independentemente do pleno alcance de uma meta caso a compradora crie empecilhos ao cumprimento de uma plano de negócios, como no caso julgado pelo STJ, anteriormente mencionado.

Para que a cláusula de earn-out cumpra a sua função enquanto instrumento de gestão de expectativas e incertezas, que visa a maximização de ganhos e a segurança tanto do vendedor quanto do comprador, é imprescindível fazer o uso adequado e cuidadoso dos recursos e ferramentas citados, para assegurar que a execução da operação ocorra de maneira segura e sem estraves desnecessários às partes.

[1] EIZIRIK, Nelson. M&A – Regime Societário e Contratual. São Paulo: Quartier Latin, 2024.

Fonte: Consultor Jurídico

Posts relacionados

Deixe um comentário