- 12 de fevereiro de 2025
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Opinião – Diretor da OCDE critica uso político da anticorrupção
Fernando Teixeira
O diretor da área de integridade da Organização para o Desenvolvimento Social e Econômico, o economista alemão Fréderic Boehm, publicou no fim de dezembro, em sua rede no Linkedin, um artigo com críticas inéditas ao uso político do discurso anticorrupção. O executivo denuncia a manipulação da agenda para projetos de poder e a promoção de movimentos autoritários, os quais, por sua vez, prejudicam a própria luta contra a corrupção.
A OCDE é até hoje um dos principais atores internacionais na promoção de políticas anticorrupção, ao lado de organismos como Banco Mundial e a entidade privada Transparência Internacional. A publicação do artigo de Boehm sinaliza crescentes tensões internas nesses órgãos, e uma possível mudança no histórico de silêncio quanto aos excessos e manipulação de movimentos anticorrupção, como a chamada operação “lava jato”.
Campanha anticorrupção
Apesar do protagonismo global na agenda anticorrupção, até hoje a OCDE evita comentar publicamente os desvios cometidos pela “lava jato” e seus efeitos campo político, econômico e social no Brasil. Em relatório publicado em novembro de 2023, a entidade registrou suspeitas de “politização e falta de imparcialidade de procuradores e juízes”, e só.
Entidades internacionais como a OCDE têm agendas políticas mas possuem quadros técnicos qualificados que podem opor resistência a omissões e manipulações grosseiras. Para quem acreditava que a “lava jato” ainda tinha alguma chance de recuperar a credibilidade no cenário internacional, o artigo de Boehm é uma pá de cal.
O tema tem importância porque no Brasil a “lava jato” está longe de ser um problema encerrado. Imediatamente após seu lançamento em 2014, o país mergulhou em uma crise política e econômica que persiste até hoje.
Nos tribunais, se discutem a revisão de acordos de leniência, fechados com a finalidade de promover o escândalo e desestabilizar grupos econômicos nacionais. Os acordos superdimensionados dificultam a recuperação de empresas e a recuperação do país. No campo penal, réus injustamente condenados buscam anular processos e reparar direitos.
Corrosão da democracia
O argumento de Frédéric Bohem é de que o uso da agenda anticorrupção para fins políticos corrói a democracia e alimenta a desconfiança da população quanto às instituições públicas. Ao contrário do que se imagina, a banalização do discurso anticorrupção aumenta a tolerância da população à corrupção, o que tende a promover líderes oportunistas.
O abuso do discurso anticorrupção, afirma o diretor da OCDE, fragiliza as instituições, fomenta a divisão social e exacerba o extremismo. O resultado é uma sociedade “cínica, resignada e apática”, ou seja, tolerante a abusos e vulnerável a aproveitadores.
“A promoção da desconfiança e a deslegitimação das instituições públicas tornaram-se ferramentas para ganhar eleições. Infelizmente, a narrativa da corrupção parece, por vezes, ter-se tornado um instrumento para um caminho sombrio para o poder político e, por vezes, parece contribuir para dividir ainda mais as nossas sociedades”, diz Boehm.
O artigo é uma forma indireta de condenação de movimentos anticorrupção baseados em espetacularização e populismo penal. O resultado evidente desses movimentos é a corrosão de agendas civilizatórias elementares. O autor sugere que excessos das campanhas anticorrupção podem estar por trás do recuo nos valores democráticos nos últimos anos:
“Hoje parece que o discurso anticorrupção saiu pela culatra. Ouvir de políticos que o governo, a Justiça ou o legislativo são ‘corruptos’ (seja verdade, ou não), mina ainda mais a nossa confiança nessas instituições públicas. Será que a narrativa anticorrupção foi corrompida e pode contribuir involuntariamente para minar a confiança nas nossas instituições e sociedades democráticas?”, pergunta o diretor da OCDE.
Novos métodos
Para Fréderic Boehm a solução é redesenhar o sistema anticorrupção. O executivo aposta em um modelo anticorrupção construído sobre uma melhor compreensão do fenômeno do ponto de vista comportamental. Ao contrário do somos levados a pensar, em geral as pessoas seguem regras e tendem a rejeitar práticas corruptas.
A questão é reduzir incentivos à corrupção sistêmica criados pelos modelos político e administrativo e ter instrumentos para prevenir desvios antes que eles ocorram. Em suma, a fórmula para combater a corrupção preservando a democracia é ter as instituições certas e fazer elas funcionarem.
O texto defende instrumentos como gerenciamento de risco e estruturas de auditoria externa. Ou seja, a corrupção reflui se houver soluções preventivas, como estruturas jurídicas e administrativas eficazes e um Estado com alto grau de institucionalidade e controle social.
No Brasil, algo que autores já perceberam é que muito da corrupção encontrada pela “lava jato” era resultado de um desenho institucional ruim, não de uma “quadrilha” instalada no Estado. Nosso sistema administrativo é excessivamente burocrático, lento e imprevisível, e nosso sistema político é confuso e dependente financiamento eleitoral, por vezes privado.
O setor empresarial precisa de “atravessadores” para garantir direitos contratuais, regulatórios e segurança jurídica, e políticos buscam patrocinadores para suas campanhas. Demanda encontra oferta e o problema da baixa institucionalidade se resolve com corrupção.
Internacionalização da anticorrupção
Organizações internacionais como a OCDE entraram em campo contra a corrupção a partir dos anos 1990, em grande parte estimulados por interesses empresariais internos nos Estados Unidos, principal sócio das grandes entidades multilaterais globais.
O contexto era de queda do muro de Berlim e abertura em ex-repúblicas socialistas e países em desenvolvimento. Muitos negócios acabaram dominados por oligarquias locais associadas a capitais europeus. Na Europa, ao contrário dos Estados Unidos, a corrupção internacional era comumente aceita, e havia até estímulos fiscais para o pagamento de propinas.
O “esforço de guerra” geopolítica pela agenda anticorrupção contou com a OCDE na linha de frente, e teve a participação estratégica do Banco Mundial. Ao banco coube defender a tese de que a corrupção é ruim para o desenvolvimento econômico, e assim condicionar linhas de crédito e pressionar por reformas institucionais.
A hipótese de que a corrupção atrapalha a economia se consolidou como um dos pilares do discurso anticorrupção. O argumento foi citado várias vezes por integrantes da finada “lava jato”, e até hoje usado para confrontar o fato de que a operação destruiu empresas, empregos, e conduziu à recessão de 2015-2016.
Até o início dos anos 1990 a análise econômica da corrupção favorecia a teoria do “grease on the wheels” (“graxa nas engrenagens”), pela qual a corrupção é um problema moral, mas não econômico Segundo a tese a corrupção ajuda empresas a superarem burocracias ineficientes e contornar interferência política, favorecendo negócios e o crescimento econômico.
O Banco Mundial conseguiu, com alguma dificuldade, emplacar a tese do “sand on the wheels” (areia nas engrenagens) em artigos publicados a partir do fim dos anos 1990. Segundo a nova hipótese, a corrupção prejudica a eficiência do sistema produtivo e reduz sua competitividade, o que pode levar à desaceleração do crescimento a longo prazo.
A Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1996, e a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2003, fizeram sua parte na campanha global anticorrupção ao aprovar tratados internacionais anticorrupção sobre o tema. Uma outra linha de ação foi desenvolvida pela organização privada Transparência Internacional.
Com sede na Alemanha, a Transparência Internacional foi fundada em 1993 por ex-executivos do Banco Mundial. Sua atribuição era servir de linha auxiliar de grandes entidades multilaterais para divulgar agendas e pressionar governos. Dependendo de lobbies e captação de recursos no setor privado, começou a abrir franquias em vários países.
No Brasil, a Transparência Internacional teve atuação muito próxima a integrantes da operação “lava jato”. Chegou mesmo a ser investigada por associação indevida e tentativa de desvio de recursos públicos arrecadados pelos acordos de leniência.
Apesar da atuação simbiótica e complementar com a “lava jato”, até hoje a entidade se recusa a fazer uma crítica adequada das fraudes e abusos cometidos pela organização de Curitiba. A entidade nunca reconheceu formalmente os efeitos catastróficos da “lava jato” para o Brasil no campo jurídico, político, econômico e social.
Coreia do Sul
A recente tentativa de golpe de Estado na Coreia do Sul lembra em vários aspectos o caso brasileiro. O episódio mostra que o populismo anticorrupção é facilmente manipulado por movimentos autoritários e se tornou um fenômeno global.
O presidente golpista, Yoon Suk Yeol, era um promotor de Justiça que fez fama nacional em campanhas anticorrupção, trabalhando na condenação de dois ex-presidentes. Yeol se filiou a um partido de extrema direita, saiu candidato, chegou à presidência da República, e no cargo, confrontado com uma crise de popularidade, decretou lei marcial e tentou dar um autogolpe.
Moralismo de ocasião e demonização da classe política são fórmulas clássicas de movimentos autoritários para descredibilizar a democracia e tomar o poder. Historicamente o discurso anticorrupção sempre foi usado por movimentos autoritários para criminalizar os adversários e suprimir o debate político.
Quando a campanha internacional contra a corrupção foi lançada mais de 30 anos atrás para atender fins econômicos e seus patrocinadores, assumiu o risco de exportar crises para democracias frágeis e países institucionalmente instáveis, como o Brasil. O recente artigo de Fréderic Bohem sinaliza uma mudança no debate e reformulação do movimento anticorrupção.
Mas esse é o primeiro passo. A revisão histórica dos abusos cometidos em nome da anticorrupção pela responsabilização de seus autores e reparação dos danos causados a empresas e indivíduos. Punitivismo barato, espetacularização da Justiça e promoção de falsos heróis fazem parte de um passado a ser lembrado para não se repetir.
Fonte: Consultor Jurídico