DIREITO CIVIL ATUAL – Que mal faz a Eireli para ser derriscada de nosso ordenamento jurídico?

Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto

O Projeto de Conversão da MP 1.040/2021 propunha a extinção da empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli). Para tanto, revogava os artigos 44, inciso VI, e 980-A do Código Civil e, estranhamente, determinava que as então existentes fossem automaticamente transformadas — rectius, convertidas — em sociedades limitadas unipessoais.

Ao sancionar sua Lei de Conversão 14.195/2021, o presidente da República vetou as alíneas que continham a revogação dos referidos dispositivos do Código Civil, mas manteve o enunciado de conversão. Veio a questão de saber, então, se era possível a constituição de novas Eireli e se os artigos codificados, a elas relativos, restaram tacitamente revogados. O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (Drei), por meio de expediente enviado às Juntas Comerciais, sustentou que houve a revogação tácita e as orientou no sentido de não mais aceitarem inscrições de novas Eireli.

Não me pareceu acertada tal solução. Realmente, para ocorrer uma revogação tácita é preciso que haja uma incompatibilidade entre a lei nova e a anterior, consoante o artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Incompatibilidade significa impossibilidade de convivência entre a norma nova e a antiga, de sorte que, com o advento daquela, esta não tenha mais qualquer espaço para ser aplicada. Como observei no QR Code acostado à 10ª. edição do livro Direito de Empresa, recentemente lançada pela Thomson Reuters, “no caso, tal incompatibilidade não se revela, na medida em que a determinação de conversão das Eireli existentes, prevista nessa disposição legal, não implica impossibilidade de aplicação da que a contempla como um dos entes personalizados (CC, artigo 44, VI) nem com aquela que regula sua constituição (CC, artigo 980-A). Realmente, para que houvesse a revogação tácita era preciso que a lei nova, se omissa quanto aos dispositivos do Código Civil referentes à matéria, contivesse um comando proibindo a criação de novas Eireli — o que não ocorreu. Pelo contrário, houve veto expresso às alíneas do artigo 57, inc. XXIX, da Lei 14.195/2021, nas quais se continha a revogação de tais disposições codificadas”. Portanto, estando ainda presentes no texto do Código Civil os artigos referentes à Eireli, continuou perfeitamente possível sua criação.

Aliás, é difícil entender a razão pela qual alguns estudiosos do direito querem a extinção dessa figura jurídica. Trata-se de uma opção que a lei confere ao empresariado e o fato de estar em desuso em nada atrapalha. Deixem-na lá, quieta, desprezada, em abandono (tal como aconteceu em época passada com a renascida sociedade em conta de participação), no mesmo canto onde se encontram as comanditas, à disposição de quem, agora ou mais tarde, quiser se utilizar de sua estrutura para desenvolver uma atividade econômica. Basta que um empresário queira se apresentar no mercado com um modelo mais consistente do que o oferecido pelo que resultou da inserção de dois parágrafos no artigo 1.052 do Código Civil. A convivência da Eireli com a sociedade limitada unipessoal, aliás, não é fenômeno tupiniquim; estão aí os exemplos de Portugal, com seu desprestigiado estabelecimento individual de responsabilidade limitada, e da França que, tempos depois de ter admitido a sociedade unipessoal, decidiu criar, também, o denominado “entrepreneur individuel à responsabilité limitée”. Apesar de terem surgido por caminhos e razões diferentes, essas figuras permanecem em pacífico convívio nas legislações que as adotaram.

Outro problema é saber o alcance da regra que determinou a conversão das Eireli existentes em sociedades limitadas unipessoais. Parece-me que tal conversão — mesmo sem considerar a aplicação do art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal — não é tão automática como pretendida, uma vez que ficou condicionada a um disciplinamento a ser elaborado pelo Drei — caso típico de norma de eficácia limitada, cujos efeitos, exceto em relação ao comando dirigido ao Drei, só se podem produzir concretamente com o regramento por ele elaborado.

Aliás, neste ponto, salientei a impossibilidade de conceber a conversão de uma Eireli em sociedade limitada unipessoal sem qualquer ação por parte de seu titular, convocado a assumir a condição de único sócio; quando menos, ninguém senão ele, precisa agir para fazer os ajustes do ato constitutivo, dentre os quais, o mais problemático, que consiste na alteração do nome empresarial. Os regimes jurídicos de uma e de outra, conquanto parecidos, não são os mesmos.

Já do ponto de vista prático, entra esta situação curiosa: se bastasse a regulamentação do Drei, ela estaria circunscrita à prática de atos internos, a exemplo da mudança no seu enquadramento administrativo, sem a menor possibilidade de levar à modificação dos atos constitutivos das destinatárias. As Eireli existentes, enquanto àquele órgão não se reportarem, não têm como ser incomodadas; podem continuar atuando livremente, sem alteração alguma em suas estruturas, apresentando-se perante terceiros como Eireli, utilizando-se do nome com que foram criadas, mantendo as mesmas relações de negócio, gerando os mesmos tributos e, para não dizer mais, ignorando, olimpicamente, o que o Drei possa ter estatuído a seu respeito. Nesse ambiente mesclado, o mercado não saberá distinguir entre as empresas individuais de responsabilidade limitada criadas antes e as surgidas depois da indigitada Lei, nem das que, por uma discutível, mas concreta interpretação elástica, estiverem inscritas nos registros civis de pessoas jurídicas espalhados por incontáveis recantos do Brasil.

Pois bem! Ao apagar das luzes do ano passado, foi editada a MP 1.085/2021 que “dispõe sobre o o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos — SERP, de que trata o artigo 37 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, e moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e de incorporações imobiliárias, de que trata a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964” (artigo 1º). Nela, com agressão descerimoniosa a todos os incisos do artigo 7º da Lei Complementar 95/1998, está dito, sem qualquer pertinência temática e sem menção alguma às expressões “empresa individual de responsabilidade limitada” ou à sua “sigla”, que se revogam — note-se — “o inciso VI do art. 44″ (MP 1.085, artigo 20, inciso VI, “a”) e “o Título II-A, do Livro II da Parte Especial” (inciso VI, letra “b”) do Código Civil (artigo 20, inciso VI, “b”). E isso é feito, ainda, com afronta direta ao artigo 62, § 1º, da Constituição Federal, que veda a edição de medida provisória já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto (e o veto existiu) do Presidente da República (artigo 62, § 1º, inciso IV), quiçá escapando por dias, da proibição de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória nela rejeitada (artigo 62, § 10).

Resta aguardar o que fará o Congresso Nacional em relação a essa nova atabalhoada e sub-reptícia investida.

Fonte: Consultor Jurídico

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