DIRETO DO CARF – Amortização fiscal do ágio em caso de assimetria entre ‘laudo fiscal’ e ‘contábil’

Por Carlos Augusto Daniel Neto e Lucas Martini de Aguiar

Em nossa primeira coluna de 2021, gostaríamos de retomar o controverso tema da amortização fiscal do ágio, com ênfase em uma questão específica, ainda pouco explorada nos acórdãos do Carf, mas que potencialmente afeta centenas de operações de reestruturação societária que ocorreram durante a vigência do Regime Tributário de Transição (RTT): o impacto fiscal de eventuais assimetrias existentes entre os laudos (que dão suporte à operação societária, evidenciando sua perspectiva econômica) “fiscais[2] (elaborados indicar o fundamento econômico do ágio pago) e “contábeis” (destinado à mensuração da mais ou menos valia líquida dos ativos e passivos da empresa adquirida).

Apenas para situar devidamente a problemática endereçada, convém rememorar que o art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 estabelecia que o ágio tivesse caráter residual em relação ao valor de patrimônio líquido (PL) equivalente à participação adquirida, devendo o seu registro contábil indicar o seu fundamento econômico[3], com base em demonstração arquivada como comprovante da escrituração (o mencionado “laudo fiscal”). Essa classificação do fundamento do ágio pago se torna absolutamente relevante, para fins fiscais, a partir da Lei nº 9.532/97, que autoriza a amortização do ágio decorrente de expectativa de rentabilidade futura, após ocorrência de confusão patrimonial entre a investidora e a investida.

Com a Lei nº 12.973/14, houve a adaptação definitiva da legislação do imposto de renda aos novos padrões de contabilidade, que foram introduzidos no Brasil a partir da Lei nº 11.638/07. Nesse ínterim, entretanto, a partir de 2008 esteve em vigência o RTT, estabelecido pela MP nº 449/08 (convertida na Lei nº 11.941/09), que visava neutralizar os efeitos fiscais das novas regras contábeis sobre a apuração do Lucro Real da pessoa jurídica, mantendo-se assim os métodos e critérios vigentes em 31/12/2007.

Nesse contexto, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprovou o Pronunciamento CPC 15 – Combinação de Negócios, em 2011, que substituiu os parâmetros de registro contábil do sobrepreço pago pela participação social, passando a exigir a mensuração do valor justo de ativos e passivos da investida, para fins de alocação de parte do custo de aquisição (“Purchase Price Allocation” – PPA), sendo o goodwill apenas a parcela que ultrapassasse a soma desse montante e do PL.

Eis, pois, a assimetria que dá origem à controvérsia: se por um lado a legislação fiscal exigia que o documento expusesse as motivações econômicas do ágio pago, em relação ao PL, de outro, o PPA demandava uma avaliação mais objetiva de intangíveis e da mais ou menos-valia de ativos e passivos adquiridos, para só após a alocação do preço nesses elementos patrimoniais, fosse mensurado o goodwill, em caráter residual.

Nesse sentido, o entendimento da Receita Federal, exarado na Solução de Consulta Cosit nº 03/2016, foi no sentido de que não haveria margem de subjetividade na identificação do fundamento econômico do ágio, devendo o mesmo ser enquadrado nas hipóteses legais, com base no demonstrativo arquivado.

Ocorre que, na prática, muitos contribuintes elaboravam uma documentação fiscal (“laudo fiscal”), baseado na motivação econômica do sobrepreço pago, e uma documentação contábil (“laudo contábil”), com base nos critérios de PPA, do Pronunciamento CPC 15, adotando o primeiro como parâmetro para a mensuração do goodwill fiscalmente amortizável.

Assim, para fins tributários, o contribuinte entendia que durante o RTT deveria prevalecer um critério mais subjetivo de mensuração do ágio (o que não se confunde com arbitrariedade, tendo em vista que demanda demonstração), reconhecendo o goodwill nos casos em que a capacidade de geração de riqueza futura da investida representasse a motivação econômica para a celebração do negócio em valor superior ao PL.

Por outro lado, em relação a essa mesma operação, o contribuinte desdobrava o custo de aquisição do investimento de acordo com as regras de PPA, para fins de conformidade às normas contábeis.

Nesse contexto, a assimetria entre a documentação providenciada pelo contribuinte — para fins de adimplemento às respectivas normas contábeis e fiscais vigentes — tem se demonstrado como ponto de controvérsia para que o Fisco pretenda a requalificação da fundamentação econômica indicada ao ágio para fins tributários e, especialmente, para o cálculo do valor passível de amortização fiscal.

O tema foi analisado no âmbito do Carf em quatro oportunidades, a partir de 2019, todos por um mesmo colegiado, e a questão ainda não foi especificamente enfrentada pela 1ª CSRF. Em todos eles, o fundamento da autuação era a necessidade da apuração do goodwill se dar de forma residual, após a alocação do sobrepreço nos outros fundamentos, mesmo para período anterior à Lei nº 12.973/14.

No Acórdão nº 1201-003.201[4], julgado pelo voto de qualidade, o contribuinte possuía um laudo fiscal, com base no fluxo de caixa descontado, utilizando como fundamento do ágio a expectativa de rentabilidade futura, e um laudo contábil, de acordo com as regras do CPC 15.

Sobre o caso, o relator aponta que a mensuração de ativos pode se dar de diversas formas, tanto pelos valores de entrada (custo histórico; custo histórico corrigido; custo corrente ou de reposição; custo de reposição corrigido; ou custo de reposição futuro), quanto pelos valores de saída (valor realizado; valor corrente de venda; valor realizável líquido; valor de liquidação; valor de realização futuro; ou valor presente do fluxo de caixa futuro), concluindo que sob o ponto de vista econômico, um mesmo ativo poderia ter um valor realizável líquido e um valor de rentabilidade futura da sua utilização, e que ambos poderiam ser fundamento econômico para o pagamento do sobrepreço, sem qualquer ordem de escolha específica. Após tecer considerações explicativas sobre CPC 15, o relator conclui pela inexistência de obrigatoriedade de uma alocação residual do ágio no goodwill, para fins fiscais.

O voto vencedor, entretanto, foi no sentido de que a alocação seria vinculada, em conformidade com a natureza jurídica da perda de capital da amortização fiscal do ágio decorrente de incorporações, conforme o art. 34 do DL nº 1.598/77[5]. O redator afirmou que a regra que tratava da dedutibilidade, como perda de capital, do resíduo devedor entre o valor da participação societária na empresa extinta e do seu acervo líquido avaliado a mercado na incorporação, juntamente ao artigo 7º da Lei nº 9.532/97, que determinava o reconhecimento de intangíveis identificados na investida, dimensionava de forma mais adequada esse valor residual que seria, efetivamente, o ágio decorrente da rentabilidade futura. Nesse sentido, conclui que a Lei nº 12.973/14, ao tratar o goodwill como valor residual após a identificação do PL e dos ativos líquidos a valor justo, apenas tornou claro entendimento que já decorreria da legislação vigente.

Ademais, também é digna de nota a erudita declaração de voto da Conselheira Bárbara Melo Carneiro, na qual explicita as razões pelas quais discorda da premissa assumida pela fiscalização de que o resultado do laudo fiscal e do laudo contábil deveria ser sempre o mesmo. O mesmo entendimento foi mantido nas demais discussões sobre esse tema, havidas nos Acórdãos nº 1201-003.202[6], 1201-003.581[7]e 1201-003.582[8].

Trata-se de um tema relevante e eminentemente técnico, mas cujo debate, para o futuro, deve ser objeto de manifestações dos demais colegiados, mormente em razão das novas regras estabelecidas pela legislação para a resolução de empates nos julgamentos, tendo em vista a circunstância dos julgamentos terem se dado pelo voto de qualidade.


[2] Fala-se em “laudo fiscal” em sentido amplo, significando qualquer documentação apta a demonstrar a fundamentação econômica do ágio, tendo em vista que a exigência efetiva de laudo, em sentido estrito, se deu apenas com a Lei nº 12.973/2014.

[3] Os fundamentos poderiam ser os seguintes: a) valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior ao custo registrado na sua contabilidade; b) valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros; c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas.

[4] Relator Cons. Alexandre Evaristo; Redator designado Cons. Allan Marcel Warwar, julgado em 16/10/2019.

[5] Art 34 – Na fusão, incorporação ou cisão de sociedades com extinção de ações ou quotas de capital de uma possuída por outra, a diferença entre o valor contábil das ações ou quotas extintas e o valor de acervo líquido que as substituir será computado na determinação do lucro real de acordo com as seguintes normas: I – somente será dedutível como perda de capital a diferença entre o valor contábil e o valor de acervo líquido avaliado a preços de mercado, e o contribuinte poderá, para efeito de determinar o lucro real, optar pelo tratamento da diferença como ativo diferido, amortizável no prazo máximo de 10 anos;

[6] Relator Cons. Allan Marcel Warwar, julgado em 16/10/2019.

[7] Relator Cons. Allan Marcel Warwar, julgado em 11/02/2020.

[8] Relator Cons. Allan Marcel Warwar, julgado em 11/02/2020.

Fonte: Consultor Jurídico

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