- 10 de junho de 2025
- Governo , Jurídico
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Interesse Público – Regulação é o caminho para redimir a inteligência artificial?
Vanice Valle
O discurso recorrente no tema da irradiação do uso de mecanismos de inteligência artificial tem sido aquele de que nossa esperança de proteção quanto a seus potenciais efeitos adversos repousa na regulação. Verbera-se pela importância dessa providência, com críticas à evidente inapetência do Poder Legislativo para o enfrentamento da difícil missão de empreender-se à regulação da matéria.
De outro lado, a Câmara dos Deputados busca uma resposta política à iniciativa do Senado — proposta de substitutivo ao PL 2.338/2023 resultante do trabalho da Comissão de Juristas naquela Casa Alta constituída para esse fim. Tem-se então a criação de nova comissão, desta feita denominada Especial, para o mesmo encargo cujo programa de trabalho apresentado no último dia 27 de maio, prevê atividades diversas, que se estenderão, ainda no âmbito daquele colegiado, até dezembro de 2025.
De tudo isso resulta o deslocamento do debate legislativo, portanto, para o ano de 2026 — este mesmo, em que se tem ainda eleições proporcionais e majoritárias. O quadro sugere baixa possibilidade de deliberação legislativa em matéria tão controvertida, quando menos até 2027, o que permite enfrentar, ainda que superficialmente, a indagação que dá título a este texto.
Ninguém duvida da importância da regulação
É indiscutível que o avanço do desenvolvimento e da utilização de aplicações de IA suscita relevantes questionamentos em relação aos riscos associados à referida tecnologia. Não é menos verdade que a normalização do uso da referida tecnologia em várias dimensões da vida vai gerando um sentimento de indispensabilidade que contribui para limitar o potencial de regulação futura limitadora do uso desses mesmos mecanismos — ainda que se possa apontar riscos relevantes. Afinal, a aversão à perda é uma característica relevante do ser humano, que privado do uso do aplicativo que lhe parecia inofensivo, evocará vários princípios jurídicos e cláusulas constitucionais abertas para afirmar tenha sido violado em sua esfera de direitos.
O ponto que se busca enfatizar nestas linhas é que de, outro lado, a ênfase que hoje se confere ao potencial “redentor” da regulação de IA se revela uma verdadeira mistificação, que gera, por sua vez, o risco de uma frustração para com o resultado regulatório que se venha a alcançar, se e quando a regulação venha a acontecer.
A hipervalorização da regulação da IA é reflexo de uma visão reducionista, que vê o desenvolvimento e uso da referida ferramenta como fenômeno predominantemente — se não exclusivamente — jurídico. Nestes termos, caberia à norma de direito empreender à delimitação das manifestações possíveis deste fenômeno, delineando as áreas de possibilidade e de vedação. Caberia ao Direito, com suas ferramentas tradicionais de sanção e coerção, reprimir o indesejável ou promover à reparação do dano — assim como Caio e Tício o faziam, em sua cidade, que à época não tinha ainda recebido a alcunha de Cidade Eterna.
A gestão dessa realidade posta — IA se apresenta como mecanismo vocacionado a quando menos potencializar a ação humana em várias dimensões da vida — é um desafio que não tem, nos acanhados limites do Direito, aptidão para sua realização.
IA como fenômeno metajurídico
A recepção em si na rotina diária, de mecanismos de IA; ou ao contrário, sua rejeição como ferramenta, é fenômeno de cariz sociológico, eis que envolve a compreensão de comportamentos coletivos. Nestes termos, pretender “domesticar” o uso da ferramenta através de regras formais de coibição de condutas pode esbarrar na limitada capacidade do regulador, de antever potenciais mudanças sociais em relação ao que seja ou não, admissível ou desejável.
Os fenômenos que podem, de outro lado, determinar o comprometimento da entrega de IA – dentre eles, o mais caro ao coração do jurista [e indiscutivelmente o viés – precisam ser compreendidos não como uma espécie de desvio comportamental de anônimos agentes de distorção de programas e bases de dados, mas como um componente desde sempre presente no comportamento humano, que nem por isso foi afastado pelas exigências do Direito de impessoalidade, isonomia formal e material, imparcialidade e etc. O viés não é fenômeno jurídico, e vem ocupando de há muito a economia comportamental, que ao invés de pretender a sua negação, explora mecanismos de neutralização desta mesma inclinação.
No campo dos potenciais efeitos da IA sobre o trabalho, uma vez mais não será a regulação jurídica pura e simples que oferecerá alternativas de solução. O desafio é social e econômico, e o campo potencial de solução envolve o desenvolvimento de políticas públicas (e não de normas jurídicas stricto sensu) aptas a empreender à requalificação de uma força de trabalho antes construída para o labor em outro ambiente.
O uso de IA é prática coletiva que atrai, a um só tempo, benefícios potenciais expressivos, ainda que na modalidade mais simples da inteligência aumentada. O surgimento, por outro lado, de mecanismos mais intrincados, como os agentes de IA, revestidos da aptidão para a tomada de decisões complexas, capazes de aprendizado e adaptação, revela a possibilidade subjacente da perda do controle do processo decisório pelo agente humano — se não por força do encantamento pela tecnologia, quando menos pela inércia que desaconselha divergir da IA.
IA envolve um trade off de vantagens e desvantagens que transcende o Direito
Em última análise, a irradiação de IA é prática que decorre de um juízo mais ou menos informado de trade off. Balanceados potenciais ganhos e perdas, dá-se a escolha individual e a coletiva. Os critérios orientadores desse juízo de trade off, é de se dizer, são metajurídicos, e hão de estar em permanente reconfiguração, considerada a dinâmica em si da tecnologia e a velocidade da formulação de juízos de aceitabilidade pela sociedade.
É nestes termos que afirmo que há uma falácia na afirmação de que a IA demonizada pode ser redimida por uma regulação jurídica adequadamente construída. Importante que os profissionais do Direito não se deixem enganar por esse discurso, que trabalha evidentemente a vaidade de cada qual. Reconhecer as limitações do Direito para a disciplina — e a palavra aqui se usa no sentido vulgar, e não no técnico — do uso de IA é uma atitude necessária, para que se possa compreender que se tem nisso um desafio de várias camadas.
Vem à mente da autora a música de Chico Buarque na qual uma personagem tantas vezes demonizada, de repente, por especificidades do momento, foi chamada a redimir uma coletividade. Na canção, depois que a personagem cumpre a “missão redentora”, a coletividade volta à reprovação. Assim pode acontecer com o Direito, frequentemente demonizado por sua inaptidão para transformar. Neste momento de crise, em que se antevê os riscos de um mundo mediado em muito pela IA, o coro vocaliza aos juristas: “você pode nos salvar, você vai nos redimir…”. O risco em aceitar o convite bem o conhece quem já ouviu a canção.
Fonte: Consultor Jurídico