- 4 de março de 2025
- Governo , Jurídico
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Opinião – A problemática normatização desenfreada da Receita Federal
Rafael Aguiar Camacho
Recentemente, uma norma editada pela Receita Federal trouxe enorme repercussão social, gerando, inclusive, uma onda de fake news e debates envolvendo os dois grupos políticos da atual polarização existente no País. Trata-se da Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024, a qual, supostamente, seria responsável pela tão divulgada “taxação do Pix”.
O tema aqui não é a possibilidade de tributação das transações via Pix, até porque a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal [1], em consonância com o artigo 153, III, da Constituição e com o artigo 43 do Código Tributário Nacional, estabelece que o fato imponível do imposto de renda está necessariamente atrelado à existência de acréscimo patrimonial. Por consequência, a mera movimentação financeira, por si só, não configuraria a materialidade do mencionado tributo [2].
Tanto é assim que foi esclarecido, pelo governo federal, a partir da edição da Medida Provisória nº 1.288/2025, bem como pelos veículos midiáticos, que a referida Instrução Normativa não atribuía qualquer hipótese de incidência tributária ao Pix, mas, na verdade, tinha como objetivo o aprimoramento do controle de transações financeiras, mediante a apresentação da e-Financeira, constituída, na forma do artigo 1º, § único da IN, “por arquivos digitais referentes a cadastros, operações financeiras, previdência privada e repasse de valores recebidos por meio dos instrumentos de pagamento”.
De qualquer forma, a repercussão negativa foi tamanha que impactou social e economicamente a sociedade, fazendo com que fosse editada a Instrução Normativa RFB nº 2.247/2025 revogando, por completo, a IN RFB nº 2.219/2024. Nesse viés, dentre os problemas causados pela rede de desinformação atrelada à citada norma administrativa, destaca-se a queda em 15,3% do uso do Pix no início de janeiro, em comparação com dezembro de 2024 [3]; e o surgimento de fraudes relacionadas à falsificação de boletos com a logo da Receira [4].
Impacto das normas da Receita
Ressaltados tais apontamentos, uma das conclusões que se pode retirar da análise do caso trazido é a magnitude dos impactos sociais, econômicos e até mesmo legais causados pela edição de normas regulamentares pela Receita Federal.
Nesse sentido, a primeira análise a ser feita é em relação à transparência, publicidade e divulgação das instruções normativas, portarias e demais normas da Receita. Reutilizando o exemplo inicial, a Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024, em que pese ter entrado em vigor somente em 1º de janeiro de 2025, foi publicada em 18 de setembro de 2024. Contudo, a imensa maioria da população teve ciência de sua existência apenas neste ano e somente em razão das manifestações realizadas pelos políticos da atual oposição governamental.
A enorme quantidade de edições mensais e a ausência de uma comunicação adequada pelos variados veículos de comunicação dificulta o acesso às normas pelos cidadãos. Além disso, a publicação apenas no Diário Oficial da União não democratiza a publicidade à sociedade, visto se tratar de ferramenta pouco intuitiva, assim como o Sistema Normas da Receita.
Outro ponto a ser destacado é a dificuldade interpretativa trazida pelas normas regulamentadoras. O texto utilizado, na grande maioria das vezes, utiliza expressões de difícil entendimento e termologias específicas de utilização interna do órgão. Tal atitude, que evidentemente implica maior complexidade do sistema normativo vigente, além de prejudicar a interpretação normativa do contribuinte, contraria veementemente a consciência legislativa pautada na simplificação, que tem se formado, sobretudo a partir da Emenda Constitucional nº 132/2022, popularmente conhecida como reforma tributária.
Um terceiro aspecto tem relação com o caráter complementar das normas regulamentares diante da natureza primária das normas legislativas. Sabe-se que a normatização do direito tributário se pauta por critérios formais de tipicidade fechada [5], isto é, um controle pela lei em sentido estrito, onde os tributos devem estar obrigatoriamente pautados por órgãos respaldados por uma representatividade democrática, em prol do princípio da legalidade.
Atos da Receita extrapolam a lei
Assim, as normas elaboradoras pela Receita Federal detêm de evidente cunho complementar ou secundário, nunca podendo ter conteúdo contra legem, conforme, inclusive, expressamente disposto no artigo 100, I, do CTN, que estabelece que os autos normativos expedidos pelas autoridades administrativas são normas meramente complementares das leis.
Ocorre que, em inúmeras ocasiões, os atos regulamentares da RFB extrapolam os conceitos estabelecidos em lei, chegando a criar disposições e obrigatoriedades que sequer foram tratadas na legislação a qual a norma administrativa supostamente teria se baseado.
E o mais grave é que essas regras estabelecidas pela Receita, mesmo inovando matérias extra legem, são constantemente respaldadas pelas delegacias de julgamento do órgão e até mesmo pelo Conselho Administrativo de Recurso Fiscais (Carf) que, na posição atual, possui a maioria dos votos pró-Fisco em decorrência do voto de qualidade, gerando, por consequência, enorme insegurança jurídica aos contribuintes.
Exagero em edição de atos normativos
Outra questão a ser ponderada, é a edição desenfreada: de acordo com estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas no ano passado [6], 13.273 atos efetivamente normativos (portarias, instruções normativas, resoluções, etc.) foram editados pelo órgão desde a promulgação da Constituição de 1988 até 2020, sendo excluídos da contagem, por exemplo, atos declaratórios executivos (51.625) e soluções de consulta (10.308).
A título de exemplo, considerando o contexto da tributação atrelada à seguridade social, as contribuições previdenciárias foram objeto de 10,75% dos atos que trataram sobre incidência tributária, e 3,91% considerando todos os atos normativos da Receita durante o período analisado. Seguindo essa lógica, a contribuição ao PIS representa 12,17% (4,43%); a Cofins, 10,93% (3,98%); e a CSLL o percentual de 7,49% (2,73%). Além disso, atinente ao estabelecimento de obrigações acessórias e à imposição de multas e demais penalidade, verificou-se um crescente substancial e progressivo ao longo dos anos da investigação.
Com isso, é evidente o esforço da Receita em expandir as implicações financeiras aos contribuintes decorrentes da inconformidade com tais atos. Tal fenômeno desprestigia o cumprimento estrito da legislação em prol de uma necessidade de cobrança descontrolada, contrariando o pressuposto básico de que a atividade arrecadatória não pode ser encarada como um fim em si mesma, mas um meio de financiamento do Estado e de suas políticas públicas.
Análise de impacto regulatório
Por fim, o artigo 5º da Lei nº 13.874/ 2019, também conhecida como Lei de Liberdade Econômica, passou a exigir a realização de chamada Análise de Impacto Regulatório (AIR) para qualquer proposta de edição/alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos, realizada por órgão da administração pública federal. A AIR, que se tornou obrigatória a partir de 15 de abril de 2021 pelo Decreto nº 10.411/2020, nada mais é do que um método de avaliação prévia dos potenciais efeitos positivos e negativos da norma regulatória.
Contudo, retomando o exemplo do início, a Receita não realizou uma AIR para a IN RFB nº 2.219/2024, retirando do processo regulatório o necessário grau de tecnicidade e eficiência da norma, o que gerou as drásticas consequências já destacadas, as quais poderiam ter sido evitadas se a regulação e publicação fosse realizada de forma mais satisfatória. Com isso, espera-se uma radical mudança da Receita Federal na edição de suas normas.
[1] RE 855.091; RE 117.887-6; ADI 5583 e ADI 5422.
[2] SEIXAS, Luiz Felipe Monteiro; GOMES, Lucas Thevenard; TOSTES, Carolina Amaral. Polêmica do Pix, fake news e a necessária racionalização das normas da Receita Federal. JOTA. 29 jan. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/polemica-do-pix-fake-news-e-a-necessaria-racionalizacao-das-normas-da-receita-federal. Acesso em 29 jan. 2025.
[3] QUEIROZ, Vitória. Pix: transações têm maior queda para janeiro em meio à onda de fake News. CNN Brasil. 15 jan. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/transacoes-via-pix-registram-maior-queda-para-janeiro-em-meio-a-onda-de-fake-news/#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20transa%C3%A7%C3%B5es%20via,implementa%C3%A7%C3%A3o%20do%20sistema%20em%202020. Acesso em 29 jan. 2025.
[4] BRASIL, Receita Federal. Receita Federal alerta: Cuidado com o “Golpe da Cobrança de Taxa sobre PIX”. GOV.BR. 09 jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/receita-federal-alerta-cuidado-com-o-201cgolpe-da-cobranca-de-taxa-sobre-pix201d. Acesso em 29 jan. 2025.
[5] OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 219.
[6] GOMES, Lucas Thevenard; SEIXAS, Luiz Felipe Monteiro. A evolução da produção normativa da Receita Federal do Brasil (1988-2020): análise empírica e implicações regulatórias. Revista Direito GV. v. 20. São Paulo/SP, 2024, p. 7.
Fonte: Consultor Jurídico